Entrevista

Racismo

«A Cova da Moura é uma prisão de grades invisíveis»

No dia 5 de fevereiro de 2015, vários jovens, reconhecidos mediadores deste bairro da Amadora, membros da associação Moinho da Juventude, dirigiram-se à esquadra da PSP para saber da situação de Bruno Lopes, detido nessa tarde. Entre eles estavam Flávio Almada e Miguel Reis. Foram algemados, espancados e detidos. “Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra”, disse-lhes um dos agentes. É o que consta da acusação do Ministério Público contra 18 polícias que já foram afastados daquela divisão e que estão no banco dos réus acusados dos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial.

Qual é o teu trabalho no bairro?

Eu trabalho com jovens, dou apoio escolar e tenho algumas responsabilidade em diferentes frentes a nível institucional no Moinho da Juventude de cuja direção também faço parte. 

Nasceste e cresceste em Cabo Verde. Em que medida é que isso influenciou o teu compromisso social e político?

Eu cresci na periferia da Cidade da Praia. Vivi em vários bairros: Eugénio Lima, Calabaceira e Safende. Era muito parecido com a Cova da Moura e até ganhou a alcunha de Chechenia. Havia gente também da Nigéria, do Gana e do Senegal. Bebi todas essas influências. E havia o marido da minha tia que me dava livros sobre o capitalismo. Na escola, éramos muito contestatários.  Fiquei lá até aos 18 anos.

Como foi chegar a Portugal?

Eu vim para estudar sociologia na Universidade da Beira Interior mas não fiquei muito tempo por várias razões de ordem material. Então, vim para a Cova da Moura onde estava a minha mãe.

É a partir daí que começas a inserir-te no movimento social do bairro e a ganhar mais consciência?

Quando comecei a trabalhar na construção civil, aprendi bastante porque estava sempre a ouvir histórias. Foi um choque ver como a exploração era tão profunda. A emigração cabo-verdiana pintava a coisa de forma diferente. Eu trabalhava ali com pessoal mais velho que tinha trabalhado na J. Pimenta. e contavam-me histórias de luta. Era gente sem contrato. Falavam-me de várias situações. Sobre como os patrões fugiam no final do mês e ninguém recebia. Falavam-me de como tentavam fazer alguma coisa para melhorar a sua situação e a dos bairros. Isso para mim foi muito importante e acabou por me influenciar. Há edifícios que nós construímos, por exemplo, alguns hospitais, que eram privados, e quando ficamos doentes não podemos ir lá porque não temos dinheiro. É um paradoxo. As pessoas que construíram aquilo não podem lá entrar.

Isso acontece também com quem limpa escritórios e com quem cozinha em restaurantes.

Sim, lembro-me de uma senhora que limpava numa universidade. Ela limpava gabinetes e dizia que quando as pessoas entravam não a reconheciam. Era como se ela não existisse. O africano foi transformado num corpo que deve ser explorado através de um processo muito violento. O corpo negro e o escravo são a mesma coisa. E não é só na sociedade portuguesa mas também a nível mundial. 

Isso explica a forma como a polícia se comporta convosco na Cova da Moura?

Eu acho que faz parte de uma lógica que é intrínseca à forma como a sociedade está organizada. Há uma excecionalidade. A forma como a polícia atua sobre pessoas que têm determinado corpo, isso faz parte de uma lógica. Por exemplo, a Cova, e os bairros em geral, são zonas de exceção. A polícia é só a face visível. Mas depois somos também os últimos a conseguir emprego e os piores empregos. E os primeiros a ser despedidos, claro. Depois há a forma como se ensina. Os materiais escolares refletem o ensino, o projeto político que se quer para a sociedade que não nos beneficia como não beneficia todos os outros que são explorados. O Estado não é neutro. Responde aos interesses de uma elite.

E a polícia responde a essa elite?

Sim, quem é que a polícia defende? No caso dos Estados Unidos ou do Brasil, a polícia nasceu para capturar escravos. Ou estás no gueto ou estás na prisão. E o gueto é uma prisão de grades invisíveis, com checkpoints.

Vocês têm regularmente cercos policiais?

Sim, mas agora diminuiu um pouco com o nosso caso mas lembro-me de um episódio para ver como as coisas estão relacionadas com o que se passa no resto do mundo e que demonstra também por que devemos estar solidários com todos os que resistem à opressão. Aquele miúdo que morreu há pouco tempo, que era rapper, o Puto G [faleceu afogado em junho no Luxemburgo], foi à Palestina e passou por um checkpoint. Quando alguém que ia com ele lhe perguntou a sensação, respondeu-lhe que era familiar. “É como no bairro”. São realidades extremamente diferentes mas ele ganhou mais consciência sobre a opressão que vivia na Cova da Moura.

O que significa viver num território de exceção?

Há que convencer a sociedade portuguesa de que há uma ameaça e quando se faz essa construção da narrativa para convencer a restante parte da sociedade portuguesa – porque nós também fazemos parte dessa sociedade – automaticamente é um apelo de que este sítio deve ser pacificado, que este sítio deve ser acantonado, que este sítio deve ser escrutinado, que nós representamos o elemento corrosivo da sociedade. E a sociedade reage e diz que nós devemos ser punidos. Devemos ser cercados. O medo que nos é lançado é também o medo que permite a elite estar no poder através da forma como as pessoas estão assustadas. Vivendo no bairro, naquilo a que se chama gueto, consegues ver o paralelismo com o que os imperialistas fazem porque ao assassinar a imagem de determinado espaço, cria-se a necessidade de que esse espaço seja invadido como o que aconteceu na Líbia ou na Síria. Isto numa lógica de pacificação e de civilização sobre alguém que eles disseram que é o outro, mas que até faz parte deles, criando uma fronteira artificial entre as pessoas.

Viver na cova da moura é como viver num apartheid?

Não é uma metáfora. Quando a polícia cerca o bairro, que é a face mais visível desse apartheid, cria-se a sensação de que tu não pertences à restante sociedade. Cria-se uma fronteira visível. Estás na estação da Damaia e consegues ver que não consegues entrar no bairro. Se um branco tentar penetrar neste espaço vão dizer que vem para comprar droga. Isso criou um problema porque essa espécie de apartheid se manifesta de várias formas. Se uma pessoa vai à procura de emprego tem receio de pôr o endereço no curriculum. Os taxistas recusam-se a transportar gente para cá. Se um jovem for abordado em Lisboa e lhe perguntarem a morada vai dizer que mora na Buraca e eu percebo porquê. Porque quando aparece o nome da Cova da Moura são automaticamente mobilizados uma série de referências e estereótipos que fazem dessa pessoa uma criminosa. A criminalização do bairro tem também um propósito imobiliário e um propósito político para criar clivagens sociais e abrir caminho a políticas securitárias, xenófobas, anti-imigração, restrição de direitos. Até para alimentar uma indústria de vigilância. Nada disto é acidental. Faz parte de uma lógica estrutural que teve como consequência a morte de vários jovens nos bairros da Amadora. O Teti foi levado para dentro da esquadra, foi torturado e morreu no hospital [em 2004]. A polícia foi absolvida e isso significa que os tribunais validaram a morte dele. Como se não fosse uma perda, como se não significasse nada. Há uma cultura de impunidade. Ao Kuku deram-lhe um tiro na cabeça a uma distância de 20 cm quando tinha 14 anos [em 2009].

É possível haver uma mudança com a mediatização do vosso caso?

Eu tenho a obrigação de tentar ser racional. A partir dos elementos que tenho, partindo da nossa história, não tenho grandes expetativas. Eu vou como [Amílcar] Cabral. Espero o melhor mas vou preparado para o pior. Nós não estamos só a lutar contra esses 18 agentes que estão no banco dos réus. Eles fazem parte do Estado que é uma estrutura que durante muito tempo legitimou essa prática de violência.

É uma luta contra a história?

Sim e eu não sei se vai haver uma viragem. Claro que o pessoal tem esperança que se faça justiça, que o terrorismo dos fardados acabe e possa ser a primeira vez que vejam algo que devolva à população a crença nesta justiça. 

Neste julgamento estiveste cara a cara com os agentes?

Não, não estive, mas mesmo que estivessem lá eu ia ser honesto da mesma forma. No julgamento, chegou uma fase em que eu comecei a chorar e não tenho vergonha disso porque somos educados para reprimir aquilo que sentimos e não foi um sinal de fraqueza. Foi basicamente naturalizar a minha humanidade. Eu não sou obrigado a reprimir quando estou a sentir dor só para dizer que eu não sinto dor. E não foi porque me torturaram. Foram lágrimas de indignação pelo que fizeram a uma pessoa com mobilidade reduzida [Rui Moniz, um dos agredidos, que teve um AVC aos nove anos e tem o braço paralisado]. Isso é crueldade e ainda por cima eles tiveram prazer em fazê-lo. É cobardia. Foi isso que me indignou. Não é que tivesse pensado em desistir. Na minha cabeça, desistir não faz parte do meu vocabulário. Eu estou todos os dias aqui no Moinho da Juventude a fazer o meu trabalho com a comunidade. Decidi não aceitar validar o sistema que nos oprime. Eles escolheram torturar-nos e nós escolhemos resistir.

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