Opinião

Literatura

Florbela, Florbela – de Filomena Oliveira e Miguel Real

Florbela Espanca foi uma das nossas mais importantes poetisas do início do século XX (1894-1930), e a que teve coragem, em tempos conturbados e na sociedade patriarcal e conservadora que o País era (mesmo durante o período da 1ª. República), assumir o direito a usar o seu corpo e a sentir o prazer da sua usança, sem tibiezas nem máscaras, num período em que essa postura emancipadora não era fácil nem tolerável pela maioria dos seus contemporâneos. Como não era aceitável transcrever, em sonetos exemplares e clássicos da nossa literatura, esses desejos e convicções, assumir liberdade poética individual, na sua condição de mulher, que as regras vigentes impediam de modo vário, e que se tornariam ainda mais gravosas durante os magistérios de Salazar e Caetano, desde a vigilância familiar, às prédicas católicas, passando pelas repressivas normas gerais do Estado fascista do acrónimo Deus, Pátria, Família.

Florbela Espanca resistiu, contornou os limites da sua condição, e impôs a sua voz como desígnio libertário, mesmo que esse desejo implique a sua negação, Eu quero amar, amar perdidamente! /Amar só por amar: Aqui… além… /Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… /Amar! Amar! E não amar ninguém!, ou até quando o desânimo, a doença e a angústia existencial percorriam a sua poética: A minha Dor é um convento ideal/Cheio de claustros, sombras, arcarias,/Aonde a pedra em convulsões sombrias/Tem linhas dum requinte escultural. Mesmo na Dor, a poesia de Florbela não perde o fulgor estético, esse simbólico arcaísmo que encontramos em António Nobre, Pascoaes e Cesário Verde.

Neorromântica vitalista, grupo em que Rui Guedes a incluiu, Florbela foi, sobretudo, uma mulher que se queria livre, percorrendo as suas paixões, seus arrebatamentos, sem limites nem submissões espúrias. Terá esse sido esse seu desejo de emancipação, consequência da sua singular vida familiar? Filomena Oliveira e Miguel Real, no magnífico estudo sobre a vida e obra da autora de Ser Poeta, incluído neste livro, dá-nos algumas pistas: «Dificilmente haverá acordo em torno da poesia da menina Florbela de Alma Conceição, nascida em Vila Viçosa, estudante de liceu em Évora, e “filha” de três “mães”, produto de um acordo entre o pai e Mariana, sua mulher, que não podia ter filhos, mas queria educar filhos ilegítimos do marido, e Antónia, criada com algum atraso mental, que hoje seria designada “barriga de aluguer”, e a nova esposa do pai após a morte da primeira, Henriqueta.» (p.9)

Para os dramaturgos, Florbela Espanca, a sua vida e obra, apresentava-se com todas as características de uma heroína trágica, uma personagem fascinante e operática, a merecer, pela sua singular dimensão humana e como escritora, digna de uma versão teatral, em que a palavra, a voz e o corpo das actrizes se tornasse ressonância dessa vivência, desse raro modo de se expor através da poesia e de enfrentar o conservadorismo e o cinzentismo de um país boçal, iletrado, onde o medo campeava e o juizinho era ataviada regra.

A peça Florbela, Florbela, de Filomena Oliveira e Miguel Real, foi escrita para as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril e dos 130 anos do nascimento da autora de Vila Viçosa e, ainda, dos 90 anos da publicação daquele que é considerado o seu mais importante livro, Charneca em Flor. Teve estreia a 10 de Outubro de 2024, no Teatro Garcia de Resende, em Évora, com encenação de Filomena Oliveira e interpretações de Carla Chambel (Florbela), Maria Marrafa (Florbela, na actualidade teatral) e Rosário Gonzaga (autora e encenadora).

Nesta peça de Filomena Oliveira e Miguel Real, não é apenas a vida e obra de um nome cimeiro das nossas letras, a protagonista, ela é, conjuntamente, uma homenagem à mulher portuguesa, às mulheres que conseguiram, num mundo padronizado, mesquinho, violento e submisso, emancipar-se, terem voz autónoma e dizerem, como um grito de combate, Não vou por aí!

Florbela, Florbela, de Filomena Oliveira e Miguel Real – edição Nova Vega/2024

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