Que impacto é que a subida do Chega pode ter nas políticas do país?
Importa sublinhar que a subida do Chega é um sintoma, um resultado. Não é uma causa nem um acontecimento que tenha uma origem autónoma. Tal como nas doenças, em que temos de ir para além da febre para procurar a infeção que a provoca, aqui temos de fazer o mesmo. A etiologia política do Chega e dos seus resultados reside na entropia da nossa democracia representativa. Napoleão dizia que os exércitos marchavam sobre o estômago. Os eleitores votam com a sua (in) satisfação perante o estado da qualidade das suas condições de vida quotidiana.
Julgo que o pior cenário será o da acentuação da capitulação da AD e, eventualmente da IL, perante o “programa” do Chega de transformação dos imigrantes ou dos ciganos, bem como de outras minorias ligadas ao disparatado conceito de “ideologia de género”, em bodes expiatórios de uma crise com uma origem mais profunda e complexa. Além de ser um erro objetivo, essa aproximação à extrema-direita, e não é só em Portugal, tem provocado um aumento da virulência do debate político, abrindo fissuras e crispações que estão nos antípodas daquilo que a sociedade portuguesa necessitaria para estar à altura dos desafios prováveis e das emergências inesperadas que nos irão surgir no caminho.
Impressiona-me a falta de lucidez e de coragem dos partidos do cada vez mais exíguo bloco central para enfrentarem as verdadeiras causas da atual situação de declínio: a degradação da União Europeia, incapaz de se reformar, tanto nas aberrações de funcionamento do euro, como no prosseguimento absurdo de uma guerra contra a Rússia (por enquanto de baixa intensidade). Ou, ainda, na manutenção de um encriptado sistema de governo, que permite a alguém que toma decisões no valor de 35 mil milhões de euros (as vacinas contra a Covid 19, compradas pela UE à Pfizer) através de SMS, ignorando as decisões de tribunais para a sua divulgação. O que é que se passa por detrás das cortinas de Bruxelas para que alguém como Ursula von der Leyen, tenha sido reeleita para um segundo mandato?
Que responsabilidade tem a comunicação social neste resultado?
Infelizmente, assim como os partidos transformaram o seu monopólio da representação num privilégio que gerem com displicência e arrogância, a comunicação social clássica, com escassas exceções, transformou a política num imenso Reality Show. Vivemos no império da política tratada nas redações como subsistema do entretenimento das massas. Falta o jornalismo de investigação, e não é só em Portugal. A investigação sobre o percurso biográfico, e respetivas ligações, dos principais atores políticos que hoje governam os países europeus, ajudaria a perceber as raízes da situação de total deriva em que a UE se encontra. A imprensa livre é hoje uma exceção.
E as redes sociais? De que forma é que a extrema-direita está a capitalizar o enviesamento dos algoritmos das redes sociais?
Num registo recente na X era apontado que o Chega, numa amostra global, tinha a maior percentagem de desinformação nas redes sociais a partir de “apoiantes” que, de facto, eram contas falsas. 58%, que comparam com 16% na Roménia, 17% na Austrália, e 28% no Canadá. Uma verdadeira máquina de mentira, ressentimento e ódio.
A incapacidade do PS e do PSD para resolver os problemas do país também ajudou?
Mesmo depois da troika, o país continuou a viver sob condições de austeridade. É verdade que os governos de Costa conseguiram repor parte dos salários cortados para pagar aos nossos credores, mas a austeridade não foi abolida, mas sim transferida para a descapitalização em meios materiais, mas sobretudo humanos, dos serviços públicos. Infelizmente, os governos, seja do PS seja da AD, tendem a subestimar, ou mesmo a ignorar o que sentem os cidadãos comuns quando têm de esperar horas a fio nas urgências hospitalares, ou quando sofrem com o atraso da justiça, ou os muitos sinais de entropia do nosso sistema educativo, as insuficiências nos transportes, para não falar daquilo que se deixou avolumar na habitação. Uma crise monumental, alimentada até por decisões que aparentemente visavam combatê-la.
Repare-se que o PS e a AD nem sequer se entendem sobre a correção da injustiça que limita os eleitores de muitos círculos eleitorais que, pela exiguidade de deputados eleitos, estão condenados à eleição de deputados dos dois partidos com mais votos. O voto do Chega tem crescido também nesses círculos.
O Chega ganha sobretudo em zonas de influência do PS. Que significado tem isto?
Os partidos com mais tempo à frente da governação são alvos naturais do voto de protesto, com muitas camadas e “razões”, que o Chega gere e manipula. É claro que a liderança desastrosa de Pedro Nuno Santos, um verdadeiro estudo de caso de “tudo aquilo que não deve ser feito”, também ajudou.
O PS corre o risco de acabar como o PS francês?
Os grandes partidos de eleitores, como é o caso do PS, parecem dotados de uma esperança de vida quase ilimitada. Na I República, o Partido Republicano Português, tornado Democrático em 1912, sob Afonso Costa, parecia imortal. Hoje apenas uma minoria de académicos se recorda da sua existência. O PS protagoniza aqui um certo paradoxo. Por um lado, a eleição de Pedro Nuno Santos para a chefia do PS, apesar da sua comprovada falta de inteligência estratégica e total precipitação tática, revela como os fatores de fidelidade pessoal e carisma foram os elementos mais importantes na raiz de uma manobra política comparável à de um comandante que atira voluntariamente o seu navio contra os recifes. Por outro lado, com a fragilidade atual da esquerda, qualquer possibilidade de sucesso na sua recomposição, numa perspetiva de reforma progressista da nossa democracia representativa, passará por aquilo que a próxima liderança de José Luís Carneiro possa fazer dentro e a partir do PS. A probabilidade de isso acontecer não me parece, todavia, muito provável.
Que futuro podemos antever para o governo de Luís Montenegro?
Luís Montenegro tentou transformar num tema político e partidário a sua falta de lisura ética, acompanhada de um bizarro descuido com a forma jurídica das coisas, que é inaceitável num advogado experiente. Com maioria absoluta, talvez o caso pudesse ser “esquecido”. Assim, com esta “minoria alargada” ele vai ficar refém desse caso e também da falta de horizontes. Continuaremos na navegação à vista. Por mais algum tempo…
A AD, o Chega e a IL têm agora capacidade para uma revisão constitucional. Podemos prever a intenção de retirar direitos e garantias?
Na verdade, pela primeira vez, um regime constitucional pode ser abolido por dentro, sem a interferência das Forças Armadas. Desde 1820, que as mudanças profundas em Portugal exigem a intervenção dos militares. Isso não vai acontecer agora. Primeiro, por as Forças Armadas já não existirem como instituição orgânica na esfera do poder político. Segundo, porque os partidos de direita (AD, Chega e IL), mesmo sem os quatro deputados a serem eleitos pela diáspora, já dispõem de 156 assentos, mais dois do que os necessários para uma revisão constitucional. Contudo, penso ser ainda cedo para saber se o PSD embarcará numa revisão total e radical da Constituição de 1976, que apareceria como uma vitória do Chega. Contudo, talvez a restrição do direito à greve seja objeto de um acordo por parte de toda a direita. O que já não seria pouca coisa.
Como analisa esta vaga de fundo neoconservadora em todo o Ocidente e o comportamento da União Europeia?
Estamos mergulhados num dramático processo de total falhanço de uma construção europeia que trocou o federalismo republicano e democrático pelo federalismo neoliberal de Friedrich Hayek, como modelo de integração europeia. As regras do jogo da união económica e monetária do euro colocaram os Estados-membros na total dependência dos mercados financeiros. Os artigos 123, 125 e 127 do Tratado de Funcionamento da União Europeia impedem o financiamento monetário dos Estados, impedem-nos de serem socorridos diretamente pelo BCE, em caso de choque assimétrico, como aconteceu a partir de 2008, e transformam o BCE num banco central que tem como única tarefa controlar a estabilidade dos preços. É incrível como é que foi possível ter criado um sistema que permitiu os bancos funcionarem sem regras, ao ponto de terem sido os causadores da erradamente chamada “crise das dívidas soberanas”, que depois a austeridade imposta aos povos pagou! Repare-se que Mario Draghi, o salvador do euro, não mudou o essencial deste sistema. O que ele fez foi aceitar pelo BCE os títulos de dívida pública, comprados pelo sistema financeiro no mercado secundário, como ativos válidos. Com isso cortou as pernas aos especuladores, fazendo baixar o valor dos juros das dívidas nacionais a todos os prazos.
Hoje, como em 2008, a emissão monetária acaba por se encontrar dominantemente na esfera privada (nos empréstimos do sistema financeiro, que é a forma principal de “imprimir dinheiro”). Por isso, a austeridade continua, assim como a desigualdade crescente, agravada pelos problemas da guerra e da falta de coordenação económica. Como não existe uma esquerda federalista, apoiada nos assalariados e na classe média, a “resposta” está a ser dada pela (re)nacionalização das políticas europeias, que, no limite, terminará com um turbulento regresso da Europa a um sistema de Estados nacionais, com um empobrecimento acentuado e a possibilidade de conflitos intraeuropeus. O processo europeu encontra-se entre a espada e a parede. Entre o neoliberalismo dos construtores neoliberais do euro e as promessas daqueles, muitos com nostalgias neofascistas, que nos querem fazer regressar a um passado de guerra e opressão, apresentado como glorioso e soberanista.
Acha que o rearmamento da Europa pode levar o continente à guerra?
O que está a acontecer é vergonhoso. A senhora von der Leyen ergueu, em dezembro de 2019, a sua voz com energia a favor do Pacto Ecológico, como exemplo europeu para o resto do mundo, do mesmo modo como o faz hoje em favor de um brutal pacote de 800 000 milhões de euros, até 2030, para comprar armas e reforçar exércitos. Promete, até, suspender as regras da disciplina nas contas públicas (os limites do défice e da dívida pública) para a despesa militar. Esse dinheiro servirá para armas, compradas no essencial aos EUA. Apesar de torcerem o nariz a Trump, os líderes europeus fazem-lhe a vontade, prometendo pagar-lhe um tributo de 5% do PIB em despesa militar que alimenta a indústria bélica dos EUA. Contudo, essa soma gigantesca faltará para as políticas de saúde, de educação, de segurança social, de ambiente. O dinheiro para a indústria da morte faltará para uma vida mais digna dos cidadãos.
O risco de a corrida aos armamentos terminar numa catástrofe bélica é grande, e até por duas modalidades. Em primeiro lugar, a paciência estratégica de Putin tem como limite a capacidade das suas forças convencionais serem capazes de conter uma ameaça de ataque por parte da NATO. A Aliança Atlântica tem sete vezes mais população do que a Rússia e um PIB 24 vezes superior. Se a atual postura ofensiva atlantista se mantiver, e Moscovo tiver de escolher entre usar o seu arsenal nuclear para conter a NATO, ou aceitar a sua destruição como Estado no campo de batalha convencional, não tenho dúvida de que o risco de uma guerra total será a probabilidade mais certa.
Outra possibilidade, dado que o chanceler Friedrich Merz já declarou que quer transformar a Alemanha na maior potência militar europeia, é a de essa irresponsável pretensão reavivar tensões fortes com a França, a Polónia, e outras vítimas históricas do militarismo alemão; acelerando o processo de desintegração da União Europeia.