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A rebeldia e a liberdade de Inês Pereira

Pedro Penim apresentou no Teatro Variedades a sua versão contemporânea de uma das mais arrojadas peças de Gil Vicente, “A Farsa de Inês Pereira”. O director do Teatro Nacional Dona Maria II quis destacar no clássico vicentino o lado de revolta de uma mulher que, em pleno no século XVI, lutou pela sua liberdade.

Inês (Stela) passa os dias na cama, reivindicando o direito a não trabalhar, uma vez que o trabalho é a exploração em que se centra o tempo das pessoas. A mãe (Rita Blanco) estranha esta posição da filha. Inês tem uma estratégia. Quer casar-se com um homem com posses. Aqui, seguimos a linha dramática já estabelecida por Gil Vicente. Inovador é o sublinhado sobre a temática do trabalho: uma protagonista que se rebela contra o estabelecido, e que nos coloca numa posição de julgamento (se não queres trabalhar, o que queres fazer?) Inês tem a liberdade de não querer ser “escrava” de uma profissão e actividade a troco se salário. É dona da sua vida.

A alcoviteira (June João) encontra-lhe um pretendente, e com ele se casa Inês. Este homem prende-a aos seus ditames machistas. Isso não dá para uma mulher destemida que nunca será dependente emocionalmente de um companheiro. Não ficará muito tempo sob a sua alçada. A certa altura, esta impertinente Inês, que nunca se cala, pode parecer perdida. Mas ela sabe bem o que quer. Consegue casar com um homem mais “desejável” (Hugo van der Ding). Este homem dá-lhe total liberdade. O que nos dá a entender que até a deixa ter amantes. Será que é a sua forma de controlar Inês?, perguntamos.

As críticas vicentinas encenadas com radicalidade e arrojo

A mentalidade medieval que dominava a sociedade é alvo de crítica por parte de Gil Vicente. Onde é que uma mulher em 1523 casaria duas vezes, e por motivos ligados não só às posses desses maridos, mas sobretudo à sua independência como mulher, dentro do compromisso conjugal?

Penim compreendeu o arrojo de Vicente, e vai ainda mais longe. Inês Pereira está o tempo no seu quarto. São os outros que a vão visitar. É uma pessoa revoltada, e não o esconde. A sua rebeldia não é vã: ela sabe o que quer, e sabe quem é. Os riscos dessas suas intenções não a demovem. O modo como a mãe e a sociedade (representada pelas demais personagens) olham para a sua suposta inércia só fazem Inês gritar mais alto contra os agrilhoamentos e polarizações sociais. Pedro Penim fala do seu intuito de questionar e complexificar dramaturgicamente o que é o trabalho, assumindo uma posição radical face ao que é imposto, ainda em 2025, e de como temos de lidar com as consequências das nossas posições e decisões.

Na entrevista da folha de sala do espectáculo, o encenador esclarece: “há aqui uma abertura que a Inês encontra para aquilo a que chamaria um espaço de desaceleração, da falta de produtividade, com o propósito de contrariar as estruturas produtivas que te empurram sempre para o auto-aperfeiçoamento, para a evolução sempre no sentido do ganho.” No fundo, trata-se de uma crítica ao sistema capitalista em que estamos imiscuídos. E Inês Pereira, na sua farsa contemporânea, solta as palavras de ordem certas e corajosas: é preciso parar. É preciso pensar no caminho unívoco por onde enveredámos. De destacar a escolha dos actores. Os géneros imiscuem-se: uma mulher é uma pessoa que reivindica pelos seus direitos pessoais e colectivos. A luta pela liberdade é o que impera. O inconformismo faz o seu papel fulcral no percurso da valente Inês Pereira.

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