Nas primeiras horas entendi, não estava preparado para aquilo. Não tinha procurado qualquer informação, tampouco me preparei para aquela realidade social carregada de história, de desigualdade, mas ao mesmo tempo de perseverança e de vontade.
Numa rápida orientação pelo espaço, foi-me explicado que livros quase não havia, cadernos eram escassos, e a falta de materiais nas salas, um reflexo da falta de investimento. Primeira aula, caiu-me a ficha. A minha função ali não era só ensinar conteúdos, era também a de preencher vidas, lacunas emocionais, perspetivas de futuro, frustrações sociais… que, tal como os materiais que faltavam, estas também escasseavam em grande número.
Disseram-me que faltas por atraso seria melhor não assinalar e portas das salas de aula, abertas, não por escolha, mas por segurança. Contato com os encarregados de educação, muito difícil, já que, na maioria dos casos, saiam de casa antes do sol nascer e chegavam já depois dos filhos estarem deitados.
Era uma escola TEIP – ou seja, Território Educativo de Intervenção Prioritária (seja lá o que isso for). Localizadas em áreas socioeconómicas vulneráveis, estas escolas acolhem alunos em contextos de vida especialmente difíceis, com poucos recursos e uma complexidade que ultrapassa o papel de um simples projeto educativo. Entrar numa escola TEIP é cruzar um limite invisível que separa uma realidade privilegiada de outra que a sociedade prefere ignorar, mas que é, paradoxalmente, essencial para a manutenção de estruturas de exploração e de mão de obra barata. Estas escolas, situadas em bairros da periferias, servem como pontos de contenção para uma população constantemente sujeita às dinâmicas de precariedade e exclusão, que começam nos pais e se refletem no futuro dos seus filhos com esse objectivo concreto: perpetuarem-se de geração em geração.
O contexto destas crianças foi um choque. Eram muitas as crianças que, por vezes, assumiam a responsabilidade de adultos. Muitas delas viam as suas mães e pais apenas a altas horas da noite, depois de uma jornada dupla ou até tripla de trabalho. Famílias destruturadas por distâncias geográficas, monoparentais, sem qualquer rede de apoio e com um Estado Social desaparecido. São as crianças muito novas que colocam no micro-ondas o tupperware que alguem lhes deixou como formula de sobrevivência, são os que desde muito pequenos têm a responsabilidade de deixar os irmãos na escola, que se dirigem a consultas médicas sozinhos, são as que esperam noite dentro que as horas passem até sentirem o som reconfortante da chave a rodar na porta e finalmente o possível carinho de um familiar cansado ao chegar a casa.
Não foram raras as reuniões interrompidas por lágrimas que caíam, silenciosas, pelo rosto dos professores ao ouvir porque é que este faltou ou o outro desapareceu da escola. Eram lágrimas não pela falta de recursos, mas pela sensação de impotência, de sentir que o seu trabalho diário era uma gota num oceano de necessidades que urge alterar pelo futuro daquelas comunidades. Essas crianças vivem as histórias de vida mais duras que já tive a oportunidade de conhecer.
Numa altura de debate sobre a periferia, um estudo da OCDE estima que são necessárias cinco gerações para que uma família consiga sair do ciclo da pobreza. É como se toda a esperança de futuro que Abril nos trouxe, tivesse passado ali apenas como uma rajada de vento e lhes tivesse dito que devem esperar um pouco mais para que aqueles territórios sejam reconhecidos, dignificados e verdadeiramente amparados, para que aquelas pessoas venham a ter a vida digna que merecem. É um Abril por cumprir cinquenta anos depois, um Abril que teima em não chegar às salas de aulas com as portas abertas, uns dias cheias, outros dias vazias.
O que ali se faz, não é só escola, é mais do que isso: é tentar preencher os vazios que as estruturas do Estado teimam em fazer de conta que não existem e que, para além disso, ainda perpetuam e acentuam essas desigualdades. São crianças e jovens a quem dizemos sempre, que Abril está ali para ser cumprido também por eles. E com o coração nas mãos dizemos nos dias difíceis a frase que tornou num mantra: “Só queremos que tentes chegar até ao fim”.