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Movimentos sociais

A herança de Abril nas lutas de hoje

Como se se tratasse de um organismo vivo, os movimentos sociais nascem de necessidades concretas de realidades vividas por todos nós. Nos últimos anos, surgiram novas organizações, movimentos e associações, e também novos rostos nestas dinâmicas coletivas. Durante o processo revolucionário desencadeado há 50 anos com o 25 de Abril, surgiram milhares de organizações, movimentos e associações por todo o país. A intensa participação das populações na vida política, económica, social e cultural do país foi reflexo de uma ampla intervenção democrática que conquistou direitos e ajudou a desenvolver Portugal.

Meio século depois, a narrativa hegemónica tenta assentar a ideia de democracia exclusivamente na expressão eleitoral periódica, excluindo a participação popular da construção ativa de um país melhor, mas todos os dias mulheres e homens contribuem de forma voluntária, integrados num tecido associativo amplo, plural, criativo e enraizado nas nossas vidas.

É o caso do Porta a Porta, movimento em defesa do direito à habitação, que tem sido presença assídua nos protestos que têm enchido as ruas para exigir casa para todos. Em conversa com A Voz do Operário, André Escoval, um dos membros, sublinha que “a novidade do surgimento do Porta a Porta, a sua abrangência nacional, a constância e regularidade do seu trabalho, tem a ver com o facto de ter as suas fileiras formadas maioritariamente por jovens adultos”, mas também“a tenacidade e convicção com que, simultaneamente, ora apresenta propostas, ora luta nas ruas por elas”. Nesse sentido, considera que são estes elementos que tornam este movimento “uma força viva, um instrumento popular para desenvolver a luta” por um problema que, como refere, é “velho demais”.

Também há pouco tempo, surgiu o movimento Vida Justa, empenhado em organizar a luta das populações dos bairros periféricos. Para Nuno Ramos de Almeida, um dos seus ativistas, a ideia do Vida Justa não se centra nas idades, mas na questão da classe social, racismo e invisibilidade dos habitantes dos territórios populares. “O que pretende o Vida Justa é ser um movimento político dos bairros para que os trabalhadores que lá vivem acedam à capacidade de mandar no seu destino. Se os pobres são a maioria, eles devem governar”, defende. “O Vida Justa articula-se em torno dessa reivindicação de poder e de questões concretas: aumento dos salários, controlo dos preços, habitação para todos, transportes públicos nos territórios populares e lutar contra a violência policial”.

No caso da recreação e do desporto popular, surgiu em Lisboa a Associação Desportiva e Recreativa “O Relâmpago”. Inaugurado justamente a 1 de maio, tratou-se do culminar de um processo associativo que já vinha a borbulhar na cidade desde 2019 e a que presidia a ideia de proporcionar o desporto, o recreio e a solidariedade para as classes populares. Nesse sentido, Ricardo Gomes, um dos seus dirigentes, considera que o Relâmpago é uma associação “que trouxe uma nova linfa no movimento das coletividades desportivas e culturais recuperando aquele espírito coletivo de antigamente”, mas ressalva que, sem saudosismos, “adequado aos tempos de hoje, onde acreditamos que fundamental deve ser o nosso papel no estímulo a dinâmicas comunitárias”.

Embora não seja uma associação tão recente, a Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) foi exemplo na capacidade de conseguir congregar uma camada jovem precária em torno de um problema concreto. Como explicou Sofia Lisboa, a sua vice-presidente, surgiu há duas décadas com o objetivo de dinamizar e congregar esforços para alterar o panorama sociopolítico atual no que diz respeito ao estatuto do Bolseiro de Investigação, contribuindo para o reconhecimento e dignificação dos profissionais que exercem investigação científica e gestão de ciência em Portugal enquanto bolseiros.

Outro caso não tão recente mas que representa uma realidade bem atual é o do Manifesto em Defesa da Cultura. De acordo com Tiago Santos, é uma plataforma que se caracteriza sobretudo pela introdução do elemento político na luta da cultura, “na maioria das vezes marcada por reivindicações setoriais e económicas ao longo dos anos”. Nesse sentido, luta “pelo cumprimento da Constituição nomeadamente no seu direito fundamental à cultura e no reconhecimento da titularidade desse direito no povo. O Manifesto vê-se para lá de um movimento de defesa dos trabalhadores da Cultura, antes um movimento que luta pelo direito de todos à criação e fruição culturais. A luta do Manifesto procura, sobretudo, a unidade de todos os trabalhadores e populações com os trabalhadores e artistas, na luta pelo direito de todos à cultura”. 

Herdeiros de Abril

Embora existam há relativamente pouco tempo ou intervenham em novas realidades, insistem que não estão desligados do tecido associativo existente e que são herdeiros de lutas passadas. 

“O Porta a Porta ancora toda a sua ação nos valores da revolução de Abril e na Constituição da República. Dizemos continuamente que o Artigo 65º da Constituição, aquele que consagra o Direito à Habitação, é para cumprir”, explica André Escoval. “É neste sentido que o Porta a Porta na sua ação dá continuidade à luta de um povo que dura há 50 anos e vai continuar. Sempre que o povo deitou mãos à obra construiu, resistiu, avançou, é isso que continuamos a fazer”.
Por sua vez, Nuno Ramos de Almeida recorda que o Vida Justa se inscreve nas experiências políticas anteriores nos bairros, como a Plataforma Gueto, “e junta aos militantes dos bairros, outros militantes com experiência em anteriores movimentos sociais, como o Que se Lixe a Troika e outros”. Acrescenta ainda que a sua fundação se dá numa iniciativa na Cova da Moura, em outubro de 2022, e que rapidamente se alargou em número de ativistas e bairros.

Nesse sentido, Ricardo Gomes lembra que um dos objetivos do Relâmpago é recuperar o papel das coletividades e o seu protagonismo nas suas comunidades utilizando o desporto e o desenvolvimento comunitário como “ferramenta de processos de mudança”. 

Também no campo do trabalho em ciência, explica Sofia Lisboa, há uma luta histórica pela democratização do ensino e da ciência e recorda essas reivindicações durante o regime fascista pelo acesso ao conhecimento quando eram as elites no poder que monopolizavam a aquisição de formação. “Mais do que ensinar o povo a ler, era preciso criar uma elite com acesso ao ensino superior e aos laboratórios do Estado. A ciência não era uma questão democrática”, sublinha.

Nesse sentido, a revolução de Abril continua a ser uma referência. André Escoval salienta que o 25 de Abril é “muito mais futuro do que passado” e que aquilo que se construiu em meses “resiste há décadas”. Este membro do Porta a Porta continua a olhar para a Constituição e a encontrar nela “a força de um projeto avançado, justo e forte que muito tem para cumprir”. E dá o exemplo do campo em que intervém: a habitação. “Estamos hoje melhor na habitação fruto da revolução, mas isso não é um ponto de chegada, precisamos de ir muito mais longe e garantir que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, refere citando a Constituição. “E nós acrescentamos, na atualidade, a preços que se possam pagar, que não hipotequem o resto da vida de cada um de nós, acrescentamos ainda que é fundamental alargar a duração dos contratos de arrendamento e acabar com o flagelo dos despejos”.

Nuno Ramos de Almeida cita o cartaz do Vida Justa — “25 de Abril de novo só com a força dos bairros” — e acrescenta que é uma afirmação que pretende dizer que “há 50 anos a revolução ficou incompleta. A contra-revolução impediu que a revolução desse mais igualdade às populações trabalhadoras e aos habitantes dos bairros”.

Mas também no desporto há lugar para recordar a herança da revolução. Segundo Ricardo Gomes, para o Relâmpago, o 25 de Abril é uma referência. “Em todas as nossas lutas, o antifascismo, antirracismo, o desporto para todos, as lutas contra todas as formas de discriminação, justiça social e vida digna para todos nunca devem ficar como uma lembrança do passado. O 25 de Abril é um processo contínuo e ainda não completamente realizado. Foram feitos gigantescos passos para frente mas não é desculpa para nos acomodarmos. Há muito para fazer e nós queremos ser protagonistas ativos dessas mudanças”.

Neste contexto, também Tiago Santos, do Manifesto em Defesa da Cultura reclama a herança da luta contra a ditadura e da revolução de Abril explicando que vem na linha do pensamento de Bento Jesus Caraça e da ideia da cultural integral do indivíduo, recordando também o papel do escritor e ensaísta Manuel Gusmão. “O projeto do 25 de Abril é uma inspiração fundamental para o Manifesto. Quer seja nos princípios fundamentais do Manifesto, desde logo a unidade na luta com todos os trabalhadores, a luta de massas e ações de rua, a clareza de princípios e de ação e a convergência com as forças progressistas e democráticas”.

Em diferentes realidades e setores da sociedade, são mulheres e homens que dão corpo à ideia da participação democrática numa linha de continuidade com um passado de luta que pode diferir nos objetivos concretos e até nas linhas de ação, mas que faz parte de uma construção coletiva interdependente. De costas voltadas para o individualismo e para a apatia, não vivem a vida de olhos postos no umbigo. Vivem de braço dado com o outro.

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