“Estive internada no Hospital São José por 24 dias devido às complicações de uma pancreatite aguda que necrosou parte do meu pâncreas”, conta a chefe de cozinha Bianca Ribeiro, que desde 2021 aguardava por uma cirurgia de retirada da vesícula através do SNS (Serviço Nacional de Saúde).
Vivendo em Portugal há quase uma década a imigrante brasileira de 42 anos afirma ainda que mesmo possuindo trabalho fixo e realizando os descontos regulares para a Segurança Social e Finanças até hoje só conseguiu obter um número de utente provisório (que a impede de receber parte do seguro pelos dias em que esteve de licença médica), além de não ter acesso ao atendimento nos Centros de Saúde nem acompanhamento regular com um médico de família.
“Acabei desenvolvendo uma síndrome de pancreatite crônica, sendo obrigada a fazer uma dieta específica para o resto da minha vida. Isso poderia ter sido evitado se eu tivesse sido operada há dois anos, durante a primeira internação no hospital Santa Maria”, desabafou.
O jovem Theo Azevedo lembra que mesmo possuindo passaporte europeu também enfrentou dificuldades para conseguir o seu número de utente. O tatuador diz ainda conhecer muitos casos onde as pessoas documentadas não conseguem utilizar o SNS devido à longa espera. “Uma amiga próxima precisou operar com urgência e teve que ir para o particular porque os médicos não marcaram a cirurgia, apenas consulta atrás de consulta com a justificativa de que faltavam profissionais”, esclareceu.
Para Isabel Camarinha, secretária da CGTP-IN (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses — Intersindical), ao longo das últimas décadas o SNS tem sofrido com a falta de investimentos e a desvalorização dos seus próprios trabalhadores, provocando um verdadeiro êxodo de profissionais para hospitais e clínicas privadas. Na última década, os médicos perderam um quarto do salário em Portugal.
“Estamos assistindo o Governo entregar aos grupos da saúde privada grande parte daquilo que deveria ser o SNS a realizar e a garantir. Nós denunciamos mas exigimos que haja uma ruptura com essa política que vem sendo seguida e que este governo, formado por maioria absoluta do Partido Socialista (PS), insistiu em continuar”, explicou a líder sindical antes da dissolução do Parlamento português no último dia 7 de novembro.
O número de pacientes sem médico de família em Portugal aumentou 29% no último ano, representando quase 1,7 milhões de utentes. Os dados são do próprio portal de transparência do SNS, que aponta como fatores a falta de médicos, salários insuficientes oferecidos aos profissionais especializados e a altíssima carga horária exigida. Em 2022, um especialista recém formado recebia 16,03 euros por hora, valor considerado baixo em comparação com outros países da União Europeia.
“É preciso lembrar que há 20 anos era a carreira pública dos profissionais de saúde que regulava os valores de mercado destes trabalhadores. Com a não atualização dos salários, os rendimentos ficaram defasados. Hoje, o setor privado consegue atrair os médicos do SNS pagando um pouco mais e oferecendo condições de trabalho melhores, pois fica bem barato recrutar esses profissionais”, explica Nuno Miguel Soveral, 49 anos, especialista em Pediatria Geral no Brasil e médico sem especialidade em Portugal.
Segundo Nuno, a falta de investimento em manutenção e modernização dos hospitais e centros de saúde também são agravantes que motivam a saída de médicos do serviço público, já que as estruturas que são reformadas ou construídas do zero vão quase sempre para a administração da iniciativa privada. Ele também acredita que a única forma de travar esse êxodo é aumentando os ordenados e melhorando as condições de trabalho para que esses profissionais permaneçam no SNS e não sejam assediados pelo capital privado.
Sindicatos e entidades ligadas ao setor da saúde ressaltam ainda que os valores pagos também são incompatíveis com aqueles que ocupam uma posição que requer responsabilidades clínicas e que exige comprometimento em diversos níveis. “Se as condições são péssimas, se os horários são longos e se não há pagamento pelas inúmeras horas extras, não conseguiremos fixar esses trabalhadores no serviço público”, reforça Isabel.
A enfermeira Rita Piteira, 35 anos, revela que, para os jovens que decidem seguir nessa área, o cenário está “um bocadinho complicado”, pois os acordos, as progressões de carreira e os aumentos dos salários não fazem face à inflação. Ela conta que há 11 anos, quando iniciou na profissão, já tinha uma perda de poder de compra de 20 a 30% e baixa perspectiva em ocupar um outro patamar.
“Temos um limite de quanto podemos progredir a menos que faças uma especialidade onde o custo tem que sair do teu bolso, como, por exemplo, uma pós-graduação em Gestão e Saúde para seres uma enfermeira-chefe. Mas claro, sempre sem garantias de que vais conseguir chegar ao próximo nível, pois os serviços estão desgastados, há falta de investimento, há falta de profissionais, há falta de material. É um descaso completo!”, detalhou.
Profissionais mais novos, que terminam a especialidade e vão ingressar na carreira, não têm muitos atrativos para fechar contratos com os hospitais públicos que os formaram exatamente pela discrepância da tabela de vencimentos que o Estado oferece, provocando saídas em massa para a assinatura de contratos com os serviços privados. O grande problema é que são estes médicos e especialistas, com menos de 50 anos, que deveriam assegurar as emergências e os horários noturnos nos hospitais.
“Como consequência temos um grande buraco em escalas nesses setores em praticamente todos os hospitais do país. Além disso, o poder público também teria que aumentar os gastos com a pasta da saúde de forma considerável, mas não o faz pelas imposições da Europa e do sistema financeiro do qual Portugal faz parte”, complementa Nuno Soveral.
Quando a precariedade também é racializada
Mesmo sabendo do impacto que a precarização do SNS causa em todos os trabalhadores, a realidade dos imigrantes se torna ainda mais difícil. Seja pela falta de médicos, pela burocracia governamental, por uma dependência econômica imposta pela União Europeia ou, simplesmente, pela xenofobia e pelo racismo estrutural.
A chefe de cozinha Bianca Ribeiro observa a situação com o olhar de quem, além de sofrer negligências por parte do SNS, também testemunha o mesmo com colegas de outras nacionalidades que dependem da utilização do serviço público. Por dividir o local de trabalho com outros estrangeiros, ela afirma ter que lidar diariamente com histórias envolvendo xenofobia contra os imigrantes mais pobres.
Ela relata já ter presenciado cenas em hospitais da área metropolitana de Lisboa onde o profissional se negava a atender imigrantes de origem asiática alegando não falar inglês, mas no momento de prestar o mesmo serviço a um turista branco ou a um nômade digital qualquer, logo aparece um esforço na comunicação.
“Os brasileiros e africanos ainda conseguem se comunicar em português, facilitando e diminuindo um pouco a dificuldade na hora de serem compreendidos no atendimento hospitalar ou de entenderem sobre as leis para procurarem pelos seus direitos básicos. Para indianos, paquistaneses ou bengalis, pensar em preencher documentos ou escrever um simples e-mail ao SNS, solicitando o número de utente, por exemplo, se torna algo praticamente impossível”.
Já para Theo, uma das formas de ajudar o SNS a preencher a falta de médicos em muitos quadros clínicos poderia ser através da inserção de profissionais imigrantes que já vivem no país. Segundo o artista, existem trabalhadores da área de saúde das mais diversas nacionalidades que teriam como atuar e assumir muitas vagas.
“Eu mesmo nunca fui atendido por um médico imigrante em Portugal, e olha que eu já tive que ir em vários hospitais neste país. Acho que a gente precisa de ajuda, tanto os médicos como os pacientes que necessitam de um serviço público com qualidade e dignidade, pois, no fim, somos todos trabalhadores”, pontua.
O médico Nuno Soveral reconhece que a xenofobia é um problema transversal na sociedade e ocorre em todos os lados, inclusive entre trabalhadores do próprio sistema de saúde. Segundo ele, não há dúvida de que os profissionais que vêm de locais abaixo da linha do Equador têm, no geral, mais dificuldades do que os que chegam de um país europeu. Isso pode causar impasses na obtenção das equivalências e no dia a dia da prática clínica.
“A prova de aptidão de língua, que, por exemplo, não se aplica aos brasileiros, me parece ser um gargalo para essa discriminação do acesso. Enquanto os colegas venezuelanos estão sempre a reprovar nessas provas, os ucranianos têm à sua disposição intérpretes e ajuda neste sentido”, revela o médico pediatra, que diz ainda haver muitos “constrangimentos” para esses profissionais. “Tenho um colega brasileiro que costuma falar que aqui temos que fazer o dobro do que os portugueses fazem para sermos reconhecidos como ‘quase iguais’”.
Freelancers da medicina
Conforme os números disponibilizados pela Ordem dos Médicos em Portugal, até março de 2023 cerca de 4.503 clínicos estrangeiros estavam inscritos no país, sendo 1.025 de nacionalidade brasileira.
No primeiro semestre, o Governo português chegou a publicar um no Brasil oferecendo condições acima das apresentadas em Portugal na tentativa de atrair médicos ao país. No entanto, o salário ofertado (€ 2.863, cerca de R$ 15.067) não está tão distante dos ordenados pagos aos profissionais que vivem em uma metrópole como São Paulo. O grande “chamativo” da proposta era a oferta por uma casa em solo lusitano.
A contratação de médicos pelo SNS, sejam portugueses ou estrangeiros, é uma medida positiva, mas, para uma parcela significativa da categoria, não pode ser encarada como a solução do problema se não houver a valorização da profissão no setor público. Nuno insiste que a ideia de buscar médicos por contratos individuais sem oferecer um plano robusto de carreira para fixar esses trabalhadores não resulta e que contratações temporárias com caráter emergencial só servem para tapar buracos específicos e não resolvem os problemas a longo prazo.
“Quanto às maternidades, por exemplo, o problema é um pouco mais complexo, as equipes que asseguram esses setores são multidisciplinares e não dependem somente dos obstetras, dependem também de centros cirúrgicos e unidades neonatais para funcionar. A resolução do problema, a meu ver, é bem profunda, não se resume só à contratação de médicos”, corrobora.
Rita Piteira também chama a atenção para a verdadeira questão que reúne o povo nas ruas de várias cidades portuguesas desde o início do ano. O fato é que a resistência do governo em fazer acordos com os sindicatos nacionais, acusando-os de quererem uma coisa que parece não ser realista, se torna cada vez mais pífia quando esse se mostra disponível para gastar o orçamento na contratação de médicos estrangeiros ou daqueles que ela denomina como “tarefeiros”.
“Há muitos médicos ‘tarefeiros’ dentro do SNS. São profissionais portugueses que trabalham a Recibos Verdes (referente ao MEI no Brasil) e que acabam por fazer o seu melhor, mas não são médicos de continuação. Atendem somente alguns dias por semana e não possuem a noção do serviço como um todo. São verdadeiros ‘freelancers’ da medicina. Acredito que a sindicalização é sempre a saída. Não digo nem a radicalização, mas a união e a organização de uma classe e de várias classes, pois se estivermos todos juntos, fica mais fácil encontrarmos uma solução efetiva e coletiva”, finaliza.