Sociedade

Coletividades

As coletividades de cultura, recreio e desporto – ontem, hoje e amanhã

“O futuro das coletividades surge estreitamente imbricado com o futuro do país.”

200 anos de história

Com a Monarquia Liberal é criado em Portugal um novo quadro político, económico, social e cultural, que viria a revelar-se favorável à emergência e crescimento do associativismo popular. As primeiras coletividades procuram encontrar resposta para várias necessidades coletivas prementes: dedicam-se à cultura e ao recreio, mas também à instrução e até à previdência. E as populações passam a ter acesso a novos e importantes espaços de sociabilidade e lazer.

As então denominadas sociedades de instrução e recreio apresentam vários traços característicos: o do intercâmbio – era relativamente comum as bandas filarmónicas e os grupos teatrais visitarem-se entre si; o da gestão democrática; o da exclusão das mulheres; e o do interclassismo.

O período da Primeira República surge associado a um contexto social muito difícil, marcado pela miséria e por balanças alimentares pobres e pouco diversificadas. A maioria dos trabalhadores aspirava apenas a sobreviver. O reformismo social fez parte da propaganda republicana, mas a intervenção do Estado foi quase sempre inconsequente, por razões financeiras ou por empecilhos burocráticos.

Será nesta fase que se assistirá à criação da Federação Distrital das Sociedades Populares de Educação e Recreio, em 1924 (para se conseguir ter maior influência junto dos poderes públicos); bem como à introdução da educação e da atividade física nas sociedades de instrução e recreio. Realidade que é acompanhada de um crescente interesse do público popular por algumas modalidades, como o ciclismo, o boxe ou o futebol.

“A partir de 1926, são vários os relatos de uma verdadeira ofensiva contra o associativismo livre.”

A partir de 1926, são vários os relatos de uma verdadeira ofensiva contra o associativismo livre – e que se fez sentir, também, entre as sociedades de instrução e recreio. Com o Estado fascista procurarse-á fomentar e impor à sociedade portuguesa um modelo nacionalista, ruralista e tradicionalista de cultura popular, com o duplo objetivo de legitimar politicamente o regime e de estabelecer um consenso social e cultural em torno de um conjunto de valores, imagens e práticas culturais.

Esse modelo foi imposto através de medidas e políticas públicas que demonstram a ambição totalizante do regime. O associativismo livre sociocultural foi fortemente limitado por diversos mecanismos, como a rede das casas do povo e a ação centralizadora da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (com claros privilégios); e pelo controlo, perseguição e repressão do meio associativo livre.

O presente

O quarto período da história das coletividades é inaugurado com o 25 de Abril de 1974. O novo regime e a Constituição de 1976 criaram um contexto abertamente favorável ao associativismo popular. E o impacto foi fortíssimo. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com a criação de novas coletividades – em 1974 eram 10 mil e hoje são cerca 30 mil.

“O novo regime e a Constituição de 1976 criaram um contexto abertamente favorável ao associativismo popular.”

As coletividades são de longe o tipo associativo mais numeroso em Portugal. Estão espalhadas em cada canto do país – das pequenas e remotas aldeias, às grandes cidades. E são um pilar da nossa democracia, com efeitos a vários níveis: no plano social (integração e coesão sociais, combate ao isolamento, envelhecimento com qualidade); na democratização do acesso à cultura e ao desporto; no plano económico (criação de emprego, promoção do comércio local); no plano do desenvolvimento comunitário (promoção da saúde individual e comunitária, construção de relações colaborativas, etc.).

Apesar disso, estão confrontadas com vários constrangimentos e ameaças. Um quadro geral de forte precariedade e desregulação do tempo de trabalho – com reflexos ao nível do recrutamento de dirigentes e em particular de jovens. O preconceito – que teima em persistir. Ou a existência de uma legislação associativa desajustada, complexa e anacrónica.

O futuro

Como serão as coletividades daqui a 10 anos? Ou 20 anos? E daqui a 50 anos? Que papel (e funções sociais) assumirão no futuro? Serão em maior número? Serão mais democráticas? Como será a cooperação com as autarquias? E com os serviços governamentais?

Não é fácil dar resposta a tais perguntas. Sem bola de cristal, a análise do futuro é sempre um exercício complexo. E discutível. Apesar disso, há dois aspetos relativos ao futuro das coletividades que se podem desde já referenciar:

a) As coletividades não vivem isoladas das comunidades onde estão inseridas. E não vivem desligadas da realidade nacional e internacional (contexto político, económico, social e cultural).

b) Mas isso não significa que o futuro seja ditado apenas pelo que vem de fora – pelo contexto externo. A vontade dos associados e dos dirigentes, a sua visão, o seu querer e o seu trabalho são também uma variável fundamental.

E isso conduz-nos a uma primeira conclusão. O futuro das coletividades será talhado (em grande medida) pela relação dialética entre essas duas realidades: o contexto externo e a realidade interna.

E o que é que sabemos sobre o contexto externo? Entre muitas outras coisas, sabemos o que dispõe a Constituição Portuguesa. A nossa Constituição aponta um caminho claro: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático (…) visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (artigo 2.º). E reconhece o papel das coletividades na construção dessa mesma democracia: compete-lhes colaborar com o Estado e outras entidades na promoção do acesso por todos quer à cultura, quer ao desporto (artigos 73.º e 79.º); e compete-lhes também intervir ativamente na vida administrativa local (artigo 263.º).

“Pode dizer-se que o futuro das coletividades surge estreitamente imbricado com o futuro do país. “

Aqui chegados, pode dizer-se que o futuro das coletividades surge estreitamente imbricado com o futuro do país. As coletividades têm (e podem ter ainda mais) um papel importante no aprofundamento da democracia em Portugal.

E o que é que sabemos sobre o contexto interno das coletividades? Sabemos que têm pontos fortes: são a maior rede social do país – e a entidade coletiva mais próxima das pessoas; são uma escola de cidadania e um exemplo de democracia; e são particularmente resilientes. Mas têm também alguns pontos fracos: por exemplo, a frágil coesão e interligação internas; o conservadorismo; ou a fraca participação de jovens e de mulheres em funções dirigentes.

A consciência dessa realidade coloca alguns desafios importantes. Para participarem na construção de uma democracia avançada – ou de alta intensidade – é fundamental que as coletividades não se coloquem apenas numa posição de amortecedor de problemas. Devem assumir cada vez mais um papel ativo e consciente na transformação da sociedade – e na construção de uma sociedade mais justa. E precisam também de estar próximas e unidas – trabalhando em parceria e no fortalecimento das suas estruturas representativas. Só assim terão a força suficiente para serem obreiras do seu futuro – e do futuro do país.

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