Entrevista

Internacional

Muntadhar al-Zaidi: “Voltaria a atirar os sapatos contra George Bush”

“Este é um beijo de despedida do povo iraquiano, seu cão”. Foi isto que Muntadhar al-Zaidi gritou ao então presidente norte-americano George W. Bush, em 2008, quando lhe atirou os dois sapatos a meio de uma conferência de imprensa em Bagdade. Em plena ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, as imagens correram o mundo e o jornalista iraquiano acabou torturado numa cela e preso durante nove meses. Herói no mundo árabe conta à Voz do Operário como foi crescer durante o regime de Saddam Hussein, as razões do seu protesto e como olha para o que está a acontecer na Palestina.

Como foi crescer durante a liderança de Saddam Hussein?

A nossa vida era feita de medo, desfiles militares, imagens de guerra na televisão. Quando era ainda criança costumava ver imagens do conflito com o Irão. Depois da invasão do Kuwait, em 1990, fomos atacados por 33 países através da operação Tempestade no Deserto [operação militar liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque]. Habituámo-nos a ver mísseis a cair sobre Bagdade. Nasci em 1979, no ano em que Ruhollah Khomeini chegou ao poder no Irão. As minhas primeiras memórias são das imagens de soldados mortos na guerra entre o Iraque e o Irão. Podíamos ver os corpos dos iranianos todos os dias na televisão de manhã à noite. Eram imagens que ficavam na cabeça. Isso foi a minha infância.

O que achava de Saddam Hussein?

Eu não gostava dele. Saddam amedrontava o nosso povo. Entretanto, por culpa dos Estados Unidos sofremos com as sanções e passámos muito mal. Eles viviam luxuosamente e nós na miséria.

O que sentiu quando os Estados Unidos invadiram o Iraque?

Eu não queria acreditar na queda de Saddam. Nós pensávamos que ele ia durar para sempre no poder. Era algo inacreditável. Mas ao mesmo tempo estavam a ocupar o nosso país. Os norte-americanos andavam nas nossas ruas com metralhadoras e tanques. Estávamos outra vez em guerra e, simultaneamente, perguntávamo-nos onde estavam os milhares de soldados de Saddam e todas as armas. Desapareceram. Eu trabalhava no jornal da União de Estudantes, onde me tornei editor-chefe, e depois comecei a trabalhar na televisão. Usei a minha voz como arma contra a ocupação. Naturalmente, acabei por apoiar a resistência, embora não fizesse parte dela.

Teve problemas com o exército norte-americano?

Sim, fui detido duas vezes e fui interrogado. Também fui raptado em 2007 por desconhecidos que me espancaram até perder a consciência. Fui libertado dois dias depois.

E como é que lhe ocorreu atacar o presidente George W. Bush?

Bom, depois de 2003, após a invasão, comecei a pensar numa maneira de fazer algo contra a ocupação. Em 2004 ou 2005, fiz um testamento gravado porque tinha receio de morrer e, simultaneamente, tinha também receio de que alguma organização xiita, alguma força como a al-Qaeda ou o partido Baath reclamassem essa ação como sendo da sua autoria e eu como seu combatente. Nessa mensagem gravada expliquei que era independente, um filho desta terra, e que não seguia nenhum partido ou milícia. Apenas um cidadão iraquiano contra a ocupação. “Eu sou Muftaz al-Zaid, sou jornalista iraquiano e vou atacar o máximo responsável pela ocupação. Nada tenho contra o povo norte-americano. Não estou contra vocês. Estou contra o homem em quem votaram”. Depois, escondi a cassete e avisei o meu irmão de que se eu morresse de forma inusual que publicasse o vídeo.

Mas isso foi muito antes do incidente em 2008.

Sim, eu tentei apanhá-lo antes. No Egito, na Jordânia, chegou a vir ao deserto do Iraque, em Al Anbar, mas nunca foi possível. Até esse dia.

Até ao dia em que finalmente o apanhou.

Surgiu a situação perfeita mas sem que estivesse à espera. Eu não sabia que Bush vinha ao Iraque. Eu era correspondente chefe e nessa tarde estava na redação a dar algumas indicações aos jornalistas antes de ir para casa. Nessa noite, tinha um repórter de imagem de turno. Então, recebemos a informação de que havia uma conferência de imprensa no edifício do primeiro-ministro na Zona Verde e que precisavam de dois operadores de câmara. Eu respondi que não era possível e é então que me dizem que vai estar o presidente George Bush na conferência. Imagine a minha surpresa.

Imagino.

Decidi ir a casa na mesma. Mudei de sapatos, porque os que levava calçados eram novos [risos] e os que calcei eram usados e confortáveis. Quando fui para a Zona Verde, decidi ir sozinho para proteger a minha equipa de jornalistas. Fui o primeiro a chegar. Na sala, estava a bandeira iraquiana e a bandeira norte-americana. Ia mesmo acontecer. O meu coração queria sair do peito. Depois, tivemos de sair para sermos revistados pela segurança norte-americana. Não descobriram nada, claro. A minha “arma” eram os sapatos.

Achou que podia ser morto?

Obviamente. Imagine, tirar os sapatos e atirá-los. São vários movimentos, são reações rápidas e tratava-se do presidente dos Estados Unidos. Podiam ter disparado.

Na altura falou-se muito do simbolismo dos sapatos no mundo árabe.

Nós devemos estar de frente para o nosso inimigo quando o atacamos. É uma questão de honra. Em relação aos sapatos, na nossa cultura, é uma forma muito má de receber alguém de quem não gostamos. Pior do que dar um estalo ou um murro. Naquele momento, eu queria mandar uma mensagem. E foi melhor não o ter atingido porque senão talvez houvesse alguém a vê-lo como uma vítima.

Na época, você foi visto como um herói no mundo inteiro.

Ainda agora, muita gente vem ter comigo e diz-me que me vê assim. Até nos Estados Unidos. Muitos agradecem-me pelo que fiz. Eu não sei porquê, mas ninguém esquece aquele episódio. Entretanto, depois de atirar os sapatos ao presidente norte-americano, acabei na prisão.

Estive preso durante nove meses e desses três foram em solitária. Fecharam-me numa cela muito pequena sem acesso a qualquer luz solar, não podia ir ao pátio e só tinha direito a ir à casa de banho três vezes ao dia. Eu estava numa prisão iraquiana controlada pelos norte-americanos.

Sofreu algum tipo de tortura?

Sim, claro, durante três dias. Fui espancado e torturaram-me com eletrochoques. Perguntavam-me quem é que estava por detrás do que fiz, perguntavam-me por países, agências de inteligência, milícias. Os guardas do primeiro-ministro, muitos deles da família do primeiro-ministro, tentavam que eu confessasse alguma coisa. Bateram-me muito. Disse-lhes que podiam ir a minha casa, abrir o armário e procurar a cassete em que explico tudo. Então, um dos guardas pôs uma arma contra a minha cabeça, tirou o seguro e preparou-se para disparar. Outro gritou-lhe que não me podiam matar porque o mundo inteiro sabia quem eu era.

Não se arrepende? Voltaria a fazê-lo?

Claro que voltaria a fazê-lo. Provavelmente, George W. Bush achava que seria recebido com flores em Bagdade. Esta ação ficou na memória de gente do mundo inteiro e do povo iraquiano como prova de que rejeitávamos a ocupação das forças norte-americanas.

E o que pensa da situação agora no Médio Oriente?

Gaza é, neste momento, uma vergonha para o mundo, uma vergonha para as Nações Unidas, para a União Europeia, para os Estados Unidos e também uma vergonha para os líderes árabes. Porque eles vêem um país que faz coisas terríveis, um país que invade, que rouba terras e extermina pessoas, e ninguém faz nada. Todos nós temos de fazer alguma coisa para não fazer parte da responsabilidade da ocupação. A população em Gaza está a morrer de fome. Se abrissem uma pequena entrada na Faixa de Gaza, os iraquianos dariam toda a comida que necessitam os palestinianos. O povo iraquiano, não o governo. Os governos do Egito e da Jordânia tampouco ajudam os palestinianos. Os países do Golfo Pérsico ajudam Israel com a ocupação. É uma loucura. Precisamos de os ajudar. E não por serem árabes ou por serem muçulmanos. Mas porque a nossa humanidade vai morrer com o assassinato em massa desta população. No futuro, o que dirão de nós? O que dirá a história do que fizemos no presente?

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