Uma menina palestina aponta no quadro da escola a realidade que conhece: um aviãoque lança uma bomba; tendas de um acampamento e pessoas a fugir desesperadas.A imagem lembra de forma arrepiante os crimes que Israel tem cometido sobre Gazanestes últimos quase dois anos. Contudo, a imagem não parece atual. O escrito num cantodo quadro tira as dúvidas: trata-se da lição de 15 de Janeiro de 1980 da turma do 2.º ano.
A menina, se for ainda viva, terá hoje 52, 53 anos. Provavelmente foi mãe, quem sabe, talvez seja já avó. Os seus antepassados diretos viveram a Nakba – a primeira grande campanha de chacina e expulsão dos palestinos das suas terras, em 1948 – e a Naksa de 1967 – a segunda destas grandes operações, através da qual Israel se apoderou de territórios destinados pelo próprio ato da sua fundação à criação do Estado da Palestina.
Todas estas gerações de palestinos e em qualquer circunstância territorial que se encontrem – os que vivem dentro das fronteiras de 1949 do Estado de Israel, os que vivem nos territórios ocupados em 1967 (Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental) ou na diáspora, nos países limítrofes ou espalhados pelo mundo – viveram as humilhações, os horrores e a violência que têm sido os instrumentos através dos quais o projeto sionista se tem imposto, dentro e fora da Palestina.
Mesmo excluindo Gaza, a lista de crimes perpetrados por Israel contra o povo palestino é infindável, tenebrosa, indecente. Nos dias que correm, contudo, é impossível não falar sobre Gaza. Aconteça o que acontecer, os crimes cometidos por Israel em Gaza ficarão para sempre como uma das páginas mais tristes e vergonhosas da História.
Este pequeno território de 365 km2 (pouco mais que o concelho de Sintra) que contava em 2022 cerca de 2 400 000 habitantes, não teria mais de 100 000 em 1948. Como se explica esta espantosa evolução demográfica? Com a limpeza étnica que Israel começou em 1948, grande parte da população expulsa das suas terras noutras zonas da Palestina histórica refugiou-se aqui. Todas as injustiças que se seguiram têm, portanto, como pano de fundo esta injustiça inicial: a espoliação de um povo e a expulsão das suas terras.
Os primeiros grandes massacres israelitas no território ao qual se tem chamado Faixa de Gaza (então sob administração egípcia) dão-se em 1956, em Khan Younis e Rafah. Em 1967, Israel ocupa militarmente o território e começa a construção de colonatos. Os abusos, violência e humilhações tornam-se diários. De notar que nem um metro quadrado do território de Gaza foi atribuído a Israel no ato de fundação ou em qualquer negociação posterior.
Com a ocupação cresce também a resistência. Em 1987 dá-se a Primeira Intifada – que eclode justamente em Gaza, no campo de refugiados de Jabalia – e, no ano 2000, a Segunda Intifada. A resistência à ocupação e às injustiças foi sempre particularmente forte e determinada em Gaza, o que levou a que Israel retirasse os seus colonos do território em 2005. Pareceria até que a “vingança”, a ação de castigo coletivo que desde então Israel leva a cabo contra Gaza, radica nas derrotas sucessivas dos seus intentos de roubar esta pequena faixa de terra aos seus habitantes.
Com a retirada de 2005, Israel começa uma nova estratégia para derrotar, submeter e, em última análise, eliminar, o povo palestino de Gaza: o bloqueio.
Desde 2005, o bloqueio de Gaza tem consistido no controlo total dos bens e pessoas que entram e saem de Gaza. Uma muralha, começada a construir nos anos 70 e desde então aumentada e “aperfeiçoada”, rodeia todo o território de Gaza. O aeroporto foi destruído por bombardeamentos e buldózeres israelitas em 2002. O mar é constantemente patrulhado por barcos e aeronaves israelitas, que nunca hesitaram em disparar a matar sobre os palestinos que se atrevam a sair para pescar ou sobre ativistas internacionais que tentem chegar a Gaza (como aconteceu contra a Gaza Freedom Flotilla em 2010).
A destruição das possibilidades de vida – a restrição da entrada de alimentos, o desmantelamento do comércio e da economia, a obstrução ao abastecimento de água e de todos os bens essenciais, a interdição da entrada a jornalistas internacionais, organizações humanitárias ou de quem quer que pretenda entrar – que Israel impõe sobre Gaza não é uma realidade recente, mas uma política com décadas que hoje atinge o nível mais extremo.
Desde 2008, Israel tem ainda movido guerras e bombardeamentos massivos contra Gaza, além de inúmeros bombardeamentos seletivos.
Em 2018 e 2019, a juventude de Gaza levou a cabo uma ação com um nome altamente simbólico e descritivo: a Grande Marcha de Retorno – queriam voltar às terras dos seus pais e dos seus avós, direito que é negado a todos os palestinos. Israel respondeu como sempre: a tiro e à bomba. E a dita comunidade internacional também como sempre: com indiferença em relação às justas reclamações dos palestinos e com objetivo apoio a Israel.
Posto isto, e isto é apenas um ínfimo resumo da realidade vivida por Gaza e pelo povo palestino desde 1948, como é possível sequer usar os acontecimentos de 7 de Outubro de 2023 para explicar os crimes que Israel pratica contra o povo palestino?
No meio de tantas injustiças, violência e humilhações que tudo pretendem roubar ao povo palestino – a terra, a cultura, a história – querem também roubar-lhe o direito a resistir. E essa é a razão pela qual tantos pretendem apresentar o “7 de Outubro” como o pecado original.
Para o povo palestino, e enquanto não vir garantidos os seus direitos nacionais, resistir é condição para existir.
