Opinião

Capitalismo

Silenciosamente, o imaginário morre aos berros

A miopia nas subjetividades defenestra-nos com um desesperante axioma: as ideias de um tempo delimitam o imaginário desse tempo. O vazio conceptual do presente é fruto de uma esperança desapegada, cria o ambiente perfeito para a fertilização de movimentos neofascistas que se pensavam moribundos.

Sei bem que há quem considere que, para marxista, debruço-me muito sobre ideias. Não há, todavia, qualquer contradição que se me aponte. Tal como apreciou recordar Friedrich Engels a Joseph Bloch, as ideias de um tempo dialogam com as condições materiais que as enformam. Integrando a superestrutura que legitima as relações de produção de uma época, mantêm uma relação dialética com elas. Concretizando num exemplo, um habitante de um feudo na idade média, embora atravessasse agruras que o poderiam motivar a questionar a servidão, dificilmente o faria porque o conjunto de mundivisões que compunham a ideologia dominante do tempo o induzia a considerar a sua posição na estratificação social algo herdado da própria ordem natural das coisas. De modo semelhante, o trabalhador contemporâneo também compreende a existência de um ordenamento proveniente deste ente difuso que apelidamos de “natureza”, mas através de artifícios que se querem mais ‘benignos’. A sua função na divisão do trabalho é, de acordo com uma perspetiva otimista, questão de tempo – pois a meritocracia ditará a sua ascensão – ou, de acordo com um fatalismo bucólico, defeito de fábrica, uma vez que não dispõe das mesmas aptidões que os plutocratas.

Eloquentemente sentenciou o velho Marx, na sua Ideologia Alemã, que as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante. Afinal, esta casta atribui diferentes utilidades ao seu capital. Uma delas é a cooptação de um conjunto de aparelhos ideológicos que veiculam as ideias necessárias à manutenção do estado atual de coisas. Se Jeff Bezos aperta cada vez mais o cerco à linha editorial do Washington Post, diário do qual é proprietário, por mera veleidade não será. Se os irmãos Koch financiam think tanks de direita e extrema-direita (e.g. Cato Institute), não há devoção ao conhecimento que justifique tanto milhão. É evidente: pretende-se a construção de um ideário hegemónico. E conseguiu-se.

Dito isto, até agora nada do que afirmei é original. E ainda que esta frase tenha despertado expectativas ao leitor quanto à próxima secção do ensaio, um aviso de percurso: comprometo-me a ser mero intérprete do que já se concebeu antes de eu próprio ter sido concebido. Seguindo o nexo de continuidade, evoco agora Mark Fisher, que, em Realismo Capitalista, se apropria do infame lema de Fredric Jameson e Slavoj Žižek, eternizando-o: é bem mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Tal miopia nas subjetividades defenestra-nos com um desesperante axioma: as ideias de um tempo delimitam o imaginário desse tempo.

Mas a iteração neoliberal do capitalismo não se contenta em fustigar todas as ideações alternativas ao modo de produção, criando sujeitos políticos acabrunhados e anémicos. A sua sanha estende-se à manutenção do mesmo modelo de gestão do capitalismo, repleto de austeridades e abstinências fiscais. Quando Margaret Thatcher afirmou não existir alternativa, não direcionava o seu ultimato apenas para o socialismo real, mas para o próprio capitalismo compatível com um estado social. Não, é estado mínimo na provisão do bem estar-social e máximo na repressão de greves e manifestações, ou nada. Graças a anos de propaganda de guerra fria e medo vermelho, convencer o público de que qualquer intervenção económica do estado era socialismo não se afigurou o desígnio mais custoso. Compreendo que Rui Rocha e Mariana Leitão nos provoquem gargalhadas com os paroxismos do “socialismo de direita”, mas não caiamos na tentação de culpar o desconhecimento. Se efetivamente há falta de saber histórico, foi projetado.

A imaginação do futuro deve, essencialmente, ater-se à perpetuação do presente – ou o seu agravamento. E se se esvai a fé na política enquanto mecanismo de construção de destinos, não falta quem prometa recuperá-la. Sequiosos de poder, os novos reacionários assumem não descansar até recuperar a soberania popular perdida, até que o povo retome as rédeas do seu fado. Convenientemente, os burgueses que os financiam também manifestam muito zelo por esta mudança. E as massas, desejosas de voltar a sentir que caminham num passadiço em direção a terrenos verdejantes, e não numa prancha em direção ao mar, acedem a um salto de fé. Contudo, é um salto cínico, uma corrida desconfiada. Não esperam solução, esperam que “se abane isto tudo”, seja lá o que isso for. Este vazio conceptual, fruto de uma esperança desapegada, cria o ambiente perfeito para a fertilização de movimentos neofascistas que pensávamos moribundos. O sistema precisa de um “terramoto”. Como ninguém sabe bem qual a magnitude ideal do sismo, quem sabe se os grupelhos violentos que até golpes de estado planeiam não são só patriotas? Quem sabe se os agressores de Adérito não agiam em legítima defesa da vontade da nação. Aquele que não acredita em bonanças só sabe pedir tempestades.

Do futuro já nos haviam furtado. Agora até expropriam a sua silhueta. Não entoarei “não passarão”, porque já passaram. Mas o portão por onde se entra é também o portão por onde se sai, nem que seja ao solavanco.

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