Cultura

“Reparations Baby!”: quando o humor aborda de forma inteligente a discriminação racial   

O mote para esta peça de humor aborda questões fracturantes latentes na Europa e, em particular, na sociedade portuguesa.

“Reparations Baby!” arranca com todo o fulgor. Estamos num concurso do canal TV QI em que os concorrentes são todos de raça negra. É uma das prerrogativas deste espectáculo que está a ir para o ar pela primeira vez. Na verdade, estamos no Teatro Variedades, Parque Mayer, em Lisboa, a assistir à última encenação de Marco Mendonça com um texto dramatúrgico também da sua autoria. 

O mote para esta peça de humor que aborda questões fracturantes latentes na Europa e, em particular, na sociedade portuguesa, é claro: em 2025, nos 50 anos da independência de quatro dos cincos países africanos colonizados por Portugal (Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique), será que as desigualdades que aconteceram no passado se perpetuam no presente? Referimo-nos ao tratamento que possuem as pessoas destas nações ou com outra ascendência africana que vivem no nosso país, bem como as consequências das guerras e genocídios que ocorreram um pouco por todo o continente. É esse o centro de “Reparations Baby”, uma criação que traz para o palco o dispositivo televisivo, um formato que, por si, estabelece de imediato a tonalidade da peça. É uma forma de dar a ver aquilo que é a realidade geral do entretenimento e de uma suposta cultura que privilegia as identidades das antigas metrópoles como Portugal. 

Marta Jong, activa e faladora, está apenas a cumprir a sua função como apresentadora do primeiro programa deste concurso que visa uma suposta tolerância em relação às pessoas de raça negra. Pedro, o produtor, só está interessado no share que vai tendo ao longo da emissão; Rita, a realizadora, perdida em toda a confusão, está ali porque não consegue que os seus filmes tenham visibilidade. As perguntas aos concorrentes de ascendência africana sucedem-se. São sobre exploração de colonizadores aos povos outrora colonizados, sobre massacres que, ao longo da História recente de África aconteceram e para os quais toda a comunidade internacional foi permissiva, mas também sobre a cultura específica destas etnias e povos. 

O jogo de “(in)tolerar” as diferenças

É um jogo irónico que inverte a lógica que nos habituámos a ver: as perguntas e as temáticas deste tipo de entretenimento não costumam interessar-se por aqueles que continuam à margem da sociedade, e cujo acesso a suportes culturais, a educação superior, a empregabilidade qualificada, no fundo, a iguais condições sociais e económicas, continua aquém de certas classes e camadas da população. A concepção criativa de “Reparations Baby!” parte de um lugar de liberdade, considerando a pergunta: Como levar a cena através do humor um tema pesado, frequentemente camuflado pela sociedade? 

Os três concorrentes sabem as respostas aos desafios colocados pela apresentadora. Tudo vai avançando, mesmo com as dinâmicas de poder dentro da hierarquia televisiva. Porém, a certa altura, uma chamada que é feita para alguém em casa provoca desconforto. O programa, que é em directo, não é cortado. O que esse anónimo veicula é um discurso de intolerância e ódio. Logo depois, a régie do programa é invadida por um grupo, também desconhecido, que reverte todo o esquema de “Reparations Baby”. Começa a ser reparado o que está a ser camuflado no concurso. O cenário cai, o estúdio escurece: e Marta é obrigada a fazer perguntas a todos os intervenientes, ou seja, aos três concorrentes negros e a produtor e realizadora. São perguntas sobre desigualdade e discriminação racial já vivenciadas, ou indirectamente infligidas por cada um deles. São questões acutilantes, regra geral silenciadas: se já tiveram uma empregada negra, se alguma vez tiveram um professor negro, se alguma vez foram confundidos numa loja pelo empregado por causa da cor da pele… A verdade vem ao de cima com a luz sombria sobre o palco. 

Do lado de cá da plateia, cada um dos espectadores reflecte sobre aquilo que está a ser inquirido em cena. Por seu turno, no palco, equipa técnica, concorrentes e apresentadora, num silêncio constrangedor, parecem igualmente concluir que há ainda um longo caminho a fazer na luta pela igualdade entre todos os cidadãos – seja de que raça, nacionalidade ou ascendência forem. 

50 anos passados sobre a independência dos referidos países que foram colónias portuguesas, não é só no continente africano que sentimos as assimetrias relativamente à Europa. Elas estão à nossa porta, quando olhamos o outro como diferente, o menorizamos; quando as instituições e os governantes se preocupam com números e não com pessoas e com questões estruturais de índole social: como acabar com a marginalização de certas comunidades, não permitindo que o fosso entre classes, raças, etnias e descendências se continue a perpetuar. 

“Reparations Baby” procura que cada um repare, esteja atento, observe o que o rodeia -os seus actos e a sociedade. Para individual e colectivamente lutarmos pela tolerância e liberdade de cada cidadão, seja ele português, africano. Somos todos cidadãos do mundo. Como refere o encenador na entrevista disponibilizada na folha de sala da peça: “É uma questão de termos consciência de que pode mesmo haver lugar para toda a gente, e pode mesmo haver uma distribuição de recursos igualitária, seja em que plano da sociedade for. (…) É preciso que as pessoas queiram essa harmonia, esse lugar utópico, que na verdade não tinha nada de ser utópico, seria muito fácil tonar realidade. Basta querer.” Através do humor, “Reparations Baby”, os seus sete actores, o dramaturgo e encenador Marco Mendonça e restante equipa técnica convocam-nos e provocam uma profunda reflexão sobre as dinâmicas complexas da sociedade actual, e de como é possível, com um tom de leveza numa peça de teatro, pôr em marcha as mudanças urgentes a fazer num mundo desigual e relutante à liberdade de sermos todos iguais no acesso às oportunidades de vida. 

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