A tentativa de essencializar o eleitor do CHEGA, reduzindo-o a um único fenómeno singular e independente das condições materiais que o rodeiam serve também para eludir responsabilidades e a prestação de contas que alguns agentes sociais devem dar no que à ascensão do partido de André Ventura diz respeito. Ironia do destino, são precisamente aqueles que mobilizam o discurso que aqui critiquei que vou culpar pelo reforço do populismo reacionário: os media televisivos. Tomando como minhas as recentes palavras de David Dinis, diretor adjunto do jornal Expresso, embora toda a comunicação social desfrute de uma quota parte da responsabilidade pela popularização do CHEGA, órgãos como a SIC, TVI e CNN, que atingem parcelas vultosas do público português, são especialmente imputáveis. Espero é que ninguém interrompa este artigo para noticiar o estado do refluxo gástrico de um qualquer líder partidário, tal como ocorreu ao pobre David. Esse fiasco da história política nacional é assaz representativo da atenção excessiva que as televisões dão à direita bafienta, em nome de uma lógica de prossecução do lucro que as reduziu à mera função de altifalantes com orçamentos milionários.
Informe-nos a teoria. Em 2008, Gianpietro Mazzoleni, produziu um capítulo para uma coletânea editada pela Palgrave Macmillan, com o título Twenty First Century Populism, ou Populismo do Século XXI. Intitulado de Populismo e os Media, o texto expunha a fórmula de crescimento dos populistas reacionários no espaço mediático. Ainda que inicialmente ignoradas pela comunicação social mainstream, devido a um misto de irrelevância no quadro político e um certo nojo das linhas editoriais, estas figuras eventualmente davam o salto para a opinião pública massificada, fosse por declarações incandescentes ou práticas premeditadas que visavam granjear atenção. Assim que se lograva o furo da bolha, a busca incessante por audiências ocupava-se do resto. Os congéneres e antecessores de André Ventura passavam a figurar na rotina diária e, simultaneamente, na dieta mediática dos espectadores. É certo que muitas das peças noticiosas veiculadas assumiam uma postura crítica em relação ao objeto reportado. Não é menos verdade que muitos comentadores políticos manifestavam publicamente o seu repúdio aos precursores do CHEGA, mas tal não causava mossa. Os momentos televisivos que simplesmente davam conta das declarações proferidas por membros desses partidos amplificavam-nas, fazendo-as chegar ao grande público; já as críticas justificavam o teatro de vitimização dos reacionários: era o sistema, as elites que tudo faziam para descredibilizar o único representante legítimo dos anseios populares.
Se o leitor considera que o CHEGA seguiu este guião na perfeição, então saiba que está certo. Tal como reporta a Marktest, André Ventura já é um protagonista mediático desde a época em que era o único representante da sua força política na Assembleia da República. A presença constante do espectro no jornalismo e no comentariado emulou uma dimensão de prevalência e relevância no debate público que contribuiu para a sua normalização e impressão nas subjetividades dos espectadores. O povo levou a torto e a direito com Ventura e, após ferida e calo, habituou-se a ele. Habituou-se tanto que já ansiava saber qual seria o comentário da estrela emergente em relação a qualquer tema político sonante. E se o público reagia positivamente à exposição da jovem promessa, premiando os canais com audiências, estes expandiam-na, matizavam-na, conferiam-lhe novos contornos.
A expressão do apogeu desta deriva ultraconservadora não se verificou apenas na cobertura da hospitalização de Ventura, que encostou episódios semelhantes, como o de Montenegro, a um canto. Também se evidenciou no facto de o líder do CHEGA ter sido o primeiro líder entrevistado pela CNN após as eleições. E o tom do entrevistador pouco interessa: se for pouco combativo, o entrevistado brilha; se for crítico, o entrevistado vitimiza-se, brilhando os seus apoiantes.
Neste enquadramento, afigura-se insuportável ver os meios de comunicação a desenvolver modelos teóricos assombrosamente infantis para descrever o eleitorado do CHEGA. Neste curto ensaio poderia enfrentá-los com informações contextuais, como a degeneração da democracia na esteira do projeto neoliberal, as expectativas frustradas de uma juventude que já não crê que viverá melhor, a dissolução do substrato da classe trabalhadora a que se convencionou chamar “classe média”, mas antes de tudo isso prefiro principiar por assinalar a tremenda hipocrisia de buscar no eleitorado que ajudamos a construir uma explicação mística e alienada para o surgimento e estabilização do populismo reacionário.
Há quem reinvente a roda, num esforço de se escapulir do juízo da história, mas meio palmo de consciência cívica é o bastante para dizer e reiterar que aqueles que hoje expelem lágrimas do Nilo pelo avanço da direita desbocada constituem simultaneamente um dos setores menos inimputáveis no quadro dos desenvolvimentos mais recentes. São todos culpados, do mainstream ao tablóide. Este último por noticiar 150 vezes o mesmo crime, tornando o cidadão mais permeável a sensações de insegurança e retóricas securitárias. O primeiro por se submeter à supremacia da audiência e trair o propósito jornalístico. Quando os liberais argumentarem que a prossecução do lucro privado conduz à manutenção do bem comum, dir-lhes-ei sempre que foi em nome do lucro que adoeceu a comunicação social.