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Energia

O apagão neoliberal

No dia 28 de abril, milhões de pessoas em Portugal, Espanha e França enfrentaram um corte de energia durante mais de 10 horas. Uma vez mais, a privatização e a liberalização de um setor estratégico da economia põe em causa o regular funcionamento da vida das pessoas.

Apesar da relativa calma, o apagão revelou falhas preocupantes que podem ser fatais em caso de catástrofe. Oito anos depois da tragédia dos incêndios que vitimaram 66 pessoas, sobretudo em Pedrógão Grande, o Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) voltou a falhar, dificultando o trabalho dos bombeiros, proteção civil e INEM. Em vários centros de Saúde faltaram geradores para garantirem o bom estado de vacinas e medicamentos e o presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional diz que houve prisões onde os geradores não arrancaram: “Está um caos”. Para além da cconfusão expetável nos transportes públicos e no trânsito, os operadores de telecomunicações não conseguiram garantir uma conexão estável para que as pessoas se mantivessem informadas sobre o que fazer. Sem qualquer controlo, os maiores supermercados decidiram fechar, deixando milhares sem acesso a bens essenciais como água potável, ao mesmo tempo que faltou o abastecimento de água em várias zonas de muitas cidades do país. Como aconteceu durante a pandemia, foram os trabalhadores que garantiram a possível normalidade num país à deriva, entregue a si próprio.

Em julho de 2021, o responsável pela Direção Geral de Energia e Geologia alertava para o risco de falhas “a muito curto prazo” devido ao encerramento da última central elétrica a carvão em Portugal. Segundo João Bernardo, o sistema vivia sobre cinzas e estava dependente da importação de Espanha. Um ano depois, o secretário de Estado da Energia, João Galamba, dava a cara pelo governo de António Costa e defendia de forma peremptória o encerramento da Central Termoelétrica do Pego, em Abrantes, a última a funcionar a carvão, garantindo que não haveria qualquer problema de abastecimento elétrico. Havia já fechado a Central Termoelétrica de Sines e, com grande pompa e circunstância, o executivo anunciava esta nova conquista no campeonato da transição energética. Apesar de deixar de produzir energia com recurso ao carvão, Portugal não passou a viver exclusivamente de energias renováveis. Meses depois, vários jornais noticiavam que Portugal passara a importar eletricidade produzida em centrais espanholas a carvão.

No mesmo ano em que João Galamba garantia aos portugueses que tudo correria bem, Pedro Sánchez, chefe do governo espanhol, assegurava também aos seus cidadãos a estabilidade da rede elétrica daquele Estado, declarações que ficaram virais nas redes sociais por estes dias. Fê-lo precisamente no rescaldo da invasão russa sobre a Ucrânia em pelo menos três ocasiões. Contudo, ao contrário do primeiro-ministro demissionário português, Pedro Sánchez anunciou que serão adotadas reformas e medidas “para garantir que isto não volta a acontecer” e insistiu que vai responsabilizar todos os operadores privados, tendo mesmo criado uma comissão de investigação para encontrar as causas e os responsáveis do apagão que afetou vários países, entre os quais Portugal.

De acordo com vários especialistas, a liberalização do mercado permitiu que, devido aos interesses económicos, os grandes operadores elétricos importem energia de Espanha a preços muito mais baratos, enquanto mantêm as centrais portuguesas paradas. Segundo Demétrio Alves, investigador em ciência na HTC/UNL e doutorado em planeamento e ordenamento do território, no momento do apagão, era isso que estava a acontecer, sublinhando que as centrais solares e eólicas “não têm qualquer capacidade de autorregulação da frequência”. O consumo nacional estava nos 8 mil megawatts, dos quais 3 mil correspondiam a importações de Espanha. A produção nacional era sobretudo fotovoltaica e houve uma redução da produção eólica que poderia ter sido compensada com a produção hidroelétrica. Como era mais barato importar eletricidade de Espanha, essa acabou por ser, uma vez mais, a opção escolhida.

Apesar dos preços baixos, as energias fotovoltaica e eólica têm demonstrado ser fontes com grandes variações, o que pode pôr em causa a estabilidade da rede elétrica. Quando se deu o apagão, a produção de energia excedia em muito o consumo. “Às 10h45 (hora portuguesa), a produção espanhola excedeu o consumo em 130%, passando a ser impossível escoar electricidade num país como Espanha àquela hora solar”, explica Demétrio Alves. “A rede torna-se, portanto, muito instável e o mais pequeno soluço nos equipamentos pode determinar o blackout”. Poderia dizer-se que o desastre era inevitável, de acordo com Demétrio Alves, já que as energias fotovoltaica e eólica “têm de estar sempre ligadas à rede porque não são despacháveis”, ou seja, “não há a possibilidade técnica de as ligar e desligar de uma forma modulada”.

“Este apagão é claramente uma consequência da transição energética feita sob o pretexto climático mas, de facto, sob os interesses neoliberais. Por isso lhe chamo transição ecoliberal”, afirma. “Uma razão para um tão longo tempo de reposição pode ser deduzida das próprias declarações do administrador da REN. Só têm duas centrais com capacidade para restaurar o sistema. Estão a pensar em contratar mais duas para o ano. Se fosse um setor nacionalizado, não teríamos esses problemas”.

Mira Amaral, antigo ministro da Indústria e Energia de vários governos chefiados por Cavaco Silva, foi outra das vozes críticas do modo como foi levado a cabo o processo de transição energética. Em direto na SIC Notícias, responsabilizou os dirigentes do PS e do PSD pelo estado atual da energia no país, considerando “prematuro” e “irresponsável” o fecho das centrais a carvão. Apontou a necessidade de um plano de deslastre com o objetivo de interromper a eletricidade em determinadas zonas para evitar a sobrecarga ou instabilidade no sistema. Nesse sentido, recordou que o arranque da rede teve de ser feito através das centrais da Tapada do Outeiro, em Gondomar, e de Castelo de Bode, em Tomar, as únicas com o sistema blackstart, que permite a sua ligação autónoma sem dependência da rede externa. “Casa roubada, trancas à porta”, Luís Montenegro anunciou no dia seguinte ao apagão que quer mais duas centrais com o mesmo mecanismo.

Por sua vez, a Fiequimetal, federação intersindical que abrange, entre outros setores, os trabalhadores da energia elétrica, lançou um comunicado em que destaca a importância da energia enquanto bem essencial, “quer para garantir necessidades básicas, quer para assegurar a segurança e o normal funcionamento da sociedade e da economia”. Para esta estrutura intersindical, ficaram em evidência “as fragilidades no Sistema Elétrico Nacional, designadamente na segurança da rede, na produção, na distribuição, na gestão e no controlo”. Não há dúvida, de acordo com estes trabalhadores, que isto resulta “da privatização e da liberalização deste setor estratégico”, com a necessidade de “uma profunda discussão sobre os níveis de interligação e dependência de Portugal face a Espanha”. A soberania energética, explica a Fiequimetal, é uma necessidade e, nesse sentido, o país “não pode estar refém de uma política economicista e de liberalização do mercado energético e, muito menos, sujeito a imposições políticas que, a pretexto de objetivos ambientais, conduziram ao encerramento de centrais termoeléctricas, como as de Sines e do Pego, sem antes serem criadas alternativas de produção”, garantindo que poderiam ter minimizado o apagão.

No momento em que aconteceu o incidente, 30% do consumo em Portugal estava a ser garantido por Espanha, mas já houve situações em que a importação chegou aos 50%, não porque não pudesse ser produzida no nosso país mas porque é mais barato aos operadores em Portugal comprar lá fora. Para a Fiequimetal isso não corresponde ao interresse do país, apenas aos lucros das empresas. Por isso, alerta para a necessidade de o Estado assumir “um papel preponderante” na gestão dos operadores do setor, destacando que os trabalhadores deram o seu melhor para repor o serviço “o mais rapidamente possível, com garantias de segurança”.

Mercado ibérico de fixação de preços

Depois da privatização da EDP, processo iniciado pelo governo de António Guterres e aprofundado pelos sucessivos executivos, e da liberalização do setor, as diferentes empresas que operam no mercado definem os seus preços através de leilões. Por imposição da União Europeia, todos os dias do ano, às 11 horas portuguesas, realiza-se uma sessão na qual se estipulam os preços e energias da eletricidade em toda a Europa para as vinte e quatro horas do dia seguinte. O preço e o volume de energia numa hora determinada são estabelecidos pelo cruzamento entre a oferta e a procura, seguindo o modelo acordado e aprovado por todos os mercados europeus.

Os agentes compradores e vendedores que se encontram em Espanha ou em Portugal apresentam as suas ofertas ao mercado diário através do Operador de Mercado Elétrico (OMIE), designado para a gestão do mercado diário e intradiário de eletricidade na Península Ibérica. Só que a aquisição de eletricidade para uma determinada hora é ao preço mais caro de todo o tipo de origem da energia em oferta. Por exemplo, se para uma determinada hora, 90% da energia adquirida for de origem hidroelétrica, que é mais barata, e 10% de gás natural, muito mais caro, o valor a pagar por todo o produto adquirido será ao preço do gás natural.

Em sentido contrário, em 2022, 81% dos 347 serviços renacionalizados pela Alemanha pertenciam ao setor da energia elétrica. Há um ano, o Reino Unido decidiu criar uma empresa pública elétrica.

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