Voz

Festas Populares

Cheira bem, cheira a Abril

Nos bairros o Arraial de Santo António baila, enquanto na baixa ele marcha. O tema era o Tejo e Alcântara ganhou, mas cantou-se a Grândola, porque em Lisboa ainda cheira a Abril.

No Largo da Graça o arraial cumpria-se. As barraquinhas revestiam as fachadas do Largo, contornando o passeio e engolindo o coreto. A fachada da Tabacaria Havanesa, por exemplo, forrada pela loja de farturas, hoje não vendia cigarros e jornais, mas antes charutos de farinha frita ensopada em óleo e polvilhada de açúcar e canela. Mas era o odor da sardinha assada o aroma permanente. A sardinha que no regime derrubado há 50 anos era dividida como pedaços de pão para enganar a fome, hoje é um pitéu mais democrático apesar dos 2 euros por espécime. 

E hoje aí está ela, uma preciosidade das festas juninas, mais profanas que sagradas, porque o Santo António deste arraial é, como diz Fernando Pessoa, do povo e não de Roma: “És este, e este és tu, e o povo é teu/ O povo que não sabe onde é o céu”, dizia o poeta, nascido no dia do padroeiro. E foi esse arraial, o do povo, que exportamos para o Brasil que em troca nos inspirou no fado. 

Lisboa, de resto, sempre foi feita de chegadas e partidas e assim era a Graça deste dia. A igreja e o velho convento, em breve, quem sabe, mais um luxuoso hotel, estava agora entaipado pelas coloridas barraquinhas, como separando o sagrado do profano. E, era deste cenário que saíam mãos passando bifanas no pão, mais sardinhas e couratos e copos, muitos copos de cerveja, vinho, morritos ou caipirinhas, tanto faz, porque a cultura, também à mesa, não se faz rogada. No largo da Graça o bailarico decorria sem guião nem par certo, mas havia um certo desacerto neste passo coletivo de dança. Dei-me conta, à entrada do largo, de barreiras que cortavam o caminho aos foliões. As grades formavam um género de porta de entrada e saída, como se houvera uma lista de convidados. A polícia, aleatoriamente, penso eu, revistava transeuntes, presumo que com a intensão de proteger os foliões e a folia. Porém, arraial e polícia não rima nada a não ser arraial de porrada e ainda estava presente na memória o episódio ocorrido, uns dias antes, quando as autoridades se mostraram compassivas e até delicadas, não para com um grupo de foliões, mas de fascistas, enquanto cerravam dentes e cassetetes nos antifascistas. 

Mas, enfim, a festa lá prosseguia por cada rua ou travessa que agora se transformara em viela estreita, forrada de gente, já não é só a raia miúda, porque a cidade mudou, mas esta Lisboa continua a ser outra, como cantava Carlos do Carmo. Descendo a Calçada da Graça a festa incendiava de um lado e do outro sem fronteiras, nem no Castelo nem em Alfama. O arraial descia, a custo, em direção a uma outra cidade, também festiva, mas mais organizada, mais formal e competitiva. Eram as marchas que convocavam Lisboa para a baixa.

Eram as marchas, que as coletividades dos bairros vão segurando como a velha foto de família que se foi perdendo, um postal ilustrado dos anos 30 do século passado. E estava prestes a desfilar na Avenida da Liberdade. O povo, arranjava-se como podia no passeio, no peão, olhando por cima do ombro, empurrando o desconforto por umas horas de prazer, na defesa do bairrismo, já que o bairro já tem poucos quem o defendam, porque tal como a tradição, sucumbiu ao apetite imobiliário. Os vips e convidados de honra, bem como os juízes das marchas, todos sempre imparciais nestas andanças, têm lugar marcado na bancada central onde tudo acontece e a fotografia dispara. 

Ora era desta tribuna que o autarca lisboeta, ufano, presidia ao arraial. Carlos Moedas abraçava com orgulho esta Alma Lisboeta: “É por isso que tenho investido tanto nesta área dos bairros, das nossas marchas, da nossa cultura popular, porque ela é a nossa base, sem esta cultura não somos lisboetas, esta cultura que nos transforma e nos torna mais lisboetas”, diria o autarca enquanto as marchas aguardavam a ordem de partida. 

Tudo estava organizado. E até há sempre um tema sugerido pela autarquia, para que a imaginação dos bairros não vagueie. O tema deste ano foi o Tejo, revelaria Moedas. Em ano de comemorar 50 anos do 25 de Abril, daquele “dia inicial inteiro e limpo”, o presidente da cidade manda o povo de Lisboa, dos bairros, olharem para o Tejo. Apetece citar de novo Sophia para dizer que às vezes “Até a voz do Mar se torna exílio”. Enfim, e as marchas prosseguiram. 

Três marchas fora da competição abririam o desfile; o Grupo de Macau da Associação Geral Desportiva de Macau Lo Leong, as Marchas Infantis das Escolas de Lisboa e a Marcha d’A Voz do Operário. Ah, mas afinal abril cabia neste arraial, pela mão dos miúdos d’A Voz do Operário, porque era esse o rio que eles viam e felizmente há olhares que não se perdem. E, talvez para espanto dos mais incautos e dos turistas, cantou-se o Grândola Vila Morena em dia de Santo António. 

E, depois, certinhas e afinadinhas, as marchas da competição desfilaram e Alcântara venceu. Renhidas até ao fim, tinha de haver um vencedor, mas ficam aqui registadas todas as associações ou coletividades que construíram este lado da festa: A quase centenária Associação dos Comerciantes nos Mercados de Lisboa, Grupo de Pesca e desporto de Santa Maria dos Olivais, que organizou a Marcha dos Olivais, o Centro Cultural D. Magalhães de Lima, (Alfama), Academia Recreio Artístico (Baixa), Operário Futebol Clube de Lisboa (Santa Engrácia), o Teatro de Carnide, o Grupo Desportivo do Castelo, Academia de artes Internas A.D.A.I. (Campolide), Sociedade Filarmónica Alunos Esperança (Alcântara), Marítimo Lisboa Clube (Bica), Esperança Atlético Clube (Madragoa), Academia Recreativa Leais Amigos (S. Vicente), Associação Recreativa de Moradores e Amigos do Bairro da Boavista, Lisboa Clube Rio de Janeiro (Bairro Alto), Grupo Desportivo da Graça, Ginásio Alto do Pina, Belém Clube, Sociedade Musical 3 de Agosto (Marvila), Sporting Clube da Penha, Grupo de Desportivo da Mouraria e a Academia Musical 1.º de Junho (Lumiar).

Artigos Relacionados