Quando se olha para o seu percurso, é difícil associá-lo a um género musical específico. Gosta de navegar entre estilos e misturá-los?
Sim, para mim a música é a música. Eu ouço muita música, das mais variadas procedências, desde desde o pop rock ao world music, gosto muito de reggae, jazz… Ou seja, se a música me diz alguma coisa e me interessa eu ouço. Quando fizemos a Naifa, por exemplo, peguei na guitarra portuguesa sem saber tocar mas achei que aquilo me podia, exatamente por não saber tocar, abrir caminhos e fintar um bocado o hábito de tocar com a guitarra eléctrica. Podia proporcionar-me outro tipo de composição, outro tipo de soluções e isso do meu ponto de vista aconteceu. Aliás, os artistas de que gosto mais misturaram sempre muita coisa. Por exemplo, a minha banda preferida são os The Clash e eram uma banda exactamente ao contrário das bandas puramente punk. Eles não tiveram qualquer problema em meter no caldeirão blues, reggae, funk e rock.
Refere a influência dos The Clash, mesmo na fundação dos Peste & Sida, e, em entrevistas que deu, falou também da música de intervenção como referência. Olha para a música como uma ferramenta de transformação social?
Obviamente. Acaba por ser um lugar comum de que já muita gente falou. Isso acontece e não é só na música. Li hoje um artigo centrado no Guernica, o quadro do Picasso, e isto é transversal a todas as artes. Podes estar a trabalhar só para o entretenimento mas também podes e deves trabalhar para além do entretenimento. Ou seja, quando as pessoas vêem um bailado, assistem a um concerto ou olham para um quadro, deve haver mais alguma coisa ali, deve haver uma mensagem, deve apelar à consciência do público e deve pôr as pessoas a pensar em mais alguma coisa e não ser um entretenimento fugaz que se esgota ali naquele segundo ou naquele minuto em que ouvimos isto ou vemos aquilo.
E sente que Luta Livre é o projeto em que participa em que isso se evidencia mais?
Não, não acho que seja isso porque acho que isto tem a ver com as épocas. Há bocado, estavas a falar, por exemplo, dos Peste & Sida e da influência que os The Clash tiveram. Os The Clash e os Xutos & Pontapés foram bandas que tiveram muita influência em aparecermos e fazermos aquele tipo de música. Os próprios Peste & Sida naqueles primeiros discos experimentavam tudo. Tínhamos música tradicional portuguesa, reggae, fomos buscar quadras populares, nós falávamos em várias questões, vários problemas dali do final dos anos 80, e falávamos de determinada forma porque tínhamos aquela idade e porque a época era aquela.
Agora faço outra coisa porque estamos em 2023. Eu tenho mais anos de música e vejo as coisas de outra forma. Mas posso ir buscar o exemplo da Naifa quando fomos buscar poemas de poetas portugueses contemporâneos, pessoas que tinham a nossa idade nessa altura e há uma série de assuntos que estão espelhados nessas letras que tem a ver com a vida do dia a dia e com a forma como encaras a vida do dia a dia. Isso é uma característica muito forte da Naifa que naquela altura também fez muito sentido para nós. Falar disso era do que estávamos a precisar de falar, estávamos a precisar de cantar em português porque a música que se ouvia na rádio era só em inglês, estávamos a precisar de mexer no fado porque toda a gente tinha medo de mexer no fado. Agora, quando comecei a escrever as coisas para a Luta Livre, talvez em 2019 e no fim de 2018, foram esses assuntos que me fizeram mexer, arrancar para o estúdio e começar a fazer canções. Era necessário falar sobre as alterações climáticas, sobre o trabalho precário, e utilizar uma linguagem aí propositadamente o mais explícita possível, evitando muito as metáforas, evitando se calhar a poesia porque as coisas têm de ser ditas de uma forma crua. Talvez por isso este seja o meu projecto mais directo e mais explícito mas tem só a ver com o contexto.
Algo que surpreende quando se vai ao Estado espanhol ou a Itália é que há uma cena musical alternativa com crítica social muito forte. Isso não acontece em Portugal.
Ainda há pouco estávamos a falar dos Peste & Sida. Naquela altura, nos anos 80, para além dessas referências de que falávamos há bocado, ouvíamos muita música que vinha do Pais Basco: La Polla Records, Kortatu, Negu Gorriak e outras bandas como os Tijuana in Blue. De repente, descobrimos isso e íamos mandando vir discos e cassetes. Isso estava presente na nossa música. Havia realmente esse colectivo de músicos, sobretudo, no País Basco, que era o que conhecíamos, que falava de coisas importantes que tinham uma ação política. Eu acho que tinha muito a ver também com o facto de serem empurrados pela questão da autodeterminação e da independência. Isso fazia com que houvesse ali uma união à volta de um tema. Nós temos aquela sensação, e eu acho que é real, por aquilo que eu conheço, que os espanhóis são mais aguerridos do que os portugueses. Acho que vivemos de outra forma e acho que isso também explica um pouco. Nós temos o fado e eles têm o flamenco e o flamenco é muito mais agitado que o fado. Eu acho que tem a ver com a nossa identidade. Houve alturas em que se calhar, se falarmos ali dos anos 70, antes do 25 de Abril e naquele período logo a seguir, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Zé Mário Branco, Fausto, Vitorino, Samuel e outros faziam esse conjunto. No fundo, eram esse grupo que tinha lutas comuns e objetivos comuns. Era um movimento inorgânico mas um movimento porque nós vivíamos sob uma ditadura com censura e isso fez com que a malta se organizasse e no fundo olhasse para o lado e não agisse sozinho, agisse em grupo, em colectivo.
Eu acho que o português reage nessas alturas, quando está muito, muito apertado. Estou a lembrar-me daquela grande manifestação quando levámos cá com a troika, do 15 de Setembro, que teve um milhão de pessoas nas ruas de Lisboa. De resto, vivemos um bocado numa espécie de banho maria que é o que está a acontecer agora, muito ajudado pelos meios de comunicação e pelo entretenimento vazio que leva a uma alienação, a dizer-nos que não há nada a fazer, que o melhor é divertirmo-nos um bocado e beber uns copos. Que não vale a pena estarmos a pensar em questões importantes porque o sistema é este, está feito assim e outro melhor não há. Isso, obviamente, tem reflexo na música porque nós músicos somos pessoas e cidadãos iguais aos outros e não se sente esse ímpeto, essa vontade de se fazer alguma coisa em conjunto para tentar comunicar, para tentar que alguma coisa mude.
Uma das suas canções foi usada pelo movimento Os Mesmos de Sempre a Pagar para promover uma manifestação. Acha importante que os movimentos sociais se sintam identificados com aquilo que faz?
É super importante. Eu nunca deixarei de fazer aquilo que me vai na cabeça quer isso tenha reflexo ou não no público. Isso é um primeiro ponto. Depois se essas canções tiverem outra projeção e se servirem realmente alguém, se servirem às lutas, então ótimo. Elas estão a cumprir exatamente essa função, estão a cumprir o seu destino. Foi para isso que nasceram e aí, quando me pediram se podiam usar a música, pá, meus amigos, nem precisavam de ter pedido, essa música é mesmo para usar. Obviamente que aquilo que está implícito nesse movimento tem tudo a ver com esta música e esta música tem tudo a ver com isto. Nós estamos todos a sofrer as mesmas consequências do aumento da prestação, do brutal aumento dos preços, do aumento dos combustíveis. Portanto, isto é geral, e quando eu escrevo não é para essa canção ficar em casa, é para ela sair para a rua e fazer o serviço que tem a fazer. Fiquei, obviamente, satisfeito com isso e, inclusive, fui à manifestação aqui em Lisboa, distribuímos panfletos com a letra da música porque a música estava a tocar no carro de som. Assim, a malta ficou a saber e se quisesse acompanhar a cantar também podia. Ou seja, fiz questão de me envolver em todo o processo.
Acaba de participar na Festa do Avante. Tem algum significado?
Significa muito. Eu estava aqui a fazer contas de cabeça e já toquei umas 16 ou 17 vezes na Festa. E já lá fui muito mais vezes como espetador e há muitos anos também lá trabalhei, também ajudei a montá-la. Vou lá desde miúdo. Fui à primeira Festa do Avante na FIL, ainda muito miúdo com os meus pais, tenho uma ideia da confusão que foi e daquilo que se passou lá. Acho que é um ambiente ótimo onde as pessoas estão lado a lado e se tratam por iguais e esse ambiente sente-se mesmo para quem vai lá pela primeira vez. Depois. há uma consciência, diria política mesmo, não só nas pessoas afetas ao PCP e que vão à Festa, mas nas pessoas que não são afetas ao PCP mas que de alguma forma sintonizam com aquilo que se passa lá e com a ideologia que está patente. Ainda por cima, porque o primeiro concerto de sempre, a primeira vez que pusemos um pé em cima de um palco para apresentar este repertório, foi na Festa de 2020, no ano da pandemia, um ano absolutamente difícil, difícil para quem construiu a festa, para quem lá foi tocar. Foi um ano mesmo de luta e isso ainda trouxe mais significado a esta segunda apresentação. Estar a debitar este repertório, a falar destas coisas, a cantar estes refrões em frente a uma plateia que realmente está sintonizada com essas questões e que não está ali só pelo entretenimento puro acho que sobe bastante a fasquia.
E em relação aos seus projetos, o que pensa fazer no futuro?
Eu faço aquilo que a situaçao vai pedindo. Não sou situacionista, não é bem isso, eu venho para o estúdio basicamente todos os dias, às vezes até ao fim de semana, e acontece sempre alguma coisa, acabo sempre por produzir alguma coisa, um beat, uma melodia. Estou sempre a construir e a gravar, e aquilo que vai aparecendo depois vou trabalhando e, se gosto, transforma-se num disco, transforma-se num projeto. Quando saiu este disco, em março, continuei com esse meu ritmo de trabalho, recomecei a fazer coisas que se enquadram dentro da ideia da Luta Livre. Acho que ainda tenho aqui muita coisa para dizer e há muita música que quero fazer dentro deste registo e para já é isso que tenho em projeto.
