Quem é a Ana Matos Fernandes?
É uma mulher portuense da geração de 80, que estudou sociologia, mas que acabou por se profissionalizar na música, mais concretamente no rap, e que tem uma ligação à cultura hip-hop desde a adolescência. Que gosta muito da escrita, acima de tudo, e que trabalha além da música, com todas as possibilidades de desdobramentos para a sua escrita. Desde letras para outras pessoas, crónicas, recentemente texto para teatro, um livro que editei, música para crianças e todo o tipo de outras coisas que possam surgir da escrita. E para terminar, diria que a experiência recente da maternidade também acabou por ter um impacto muito profundo na minha identidade e, portanto, também diria que, além de todas essas coisas, sou mãe.
A Ana encontrou-se com a Capicua. Como aconteceu?
Comecei a fazer graffiti aos 15 anos, interessei-me pela cultura hip-hop, que tem várias dimensões: graffiti, breakdance, DJ – a arte de manipular o gira-discos – e o rap – essa forma de debitar rimas cadenciadas em cima de uma base instrumental bastante minimalista. Comecei então a frequentar um bar que havia no Porto, o Comix, onde se encontrava toda a gente da cultura hip-hop. Era uma fase embrionária, sou da segunda geração. Havia o Mind da Gap, Dealema, a banda Matooso e pouco mais. Quando encontrei o rap, não só percebi que pela democraticidade do registo e pelo facto de estar perante rappers praticamente da minha idade, que faziam música a partir das suas emoções, das suas histórias, da linguagem de todos os dias, do nosso calão, com o nosso sotaque, percebi que também podia fazer aquilo, que tinha muito a ver com a minha relação com a escrita, a única diferença é que seria aplicada à música. Nunca pensei fazer música. Não sabia tocar nenhum instrumento, não tinha voz para cantar e, a partir da escrita, pude ambicionar essa possibilidade. Por outro lado, encontrei um sentido de identificação com aquele estilo de música muito a partir do que ouvia na infância, as músicas que os meus pais ouviam: Zeca Afonso, Zé Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho. Senti ali uma ligação óbvia, porque, esteticamente não tendo nada a ver, havia um protagonismo da palavra óbvio como objeto estético, e também como veículo de discurso, como ferramenta para a transformação do mundo. Na minha conceção de música, em que a palavra estava no centro, o rap dava continuidade a isso. Também por uma questão de poder desenvolver a partir dessa democraticidade do género a minha escrita, comecei a escrever e passei de consumidor do rap a aprendiz de rapper. Fui levando aquilo mais a sério e, a partir de 2004, quando fundei a minha primeira banda, nunca mais parei.
O Rap pode ser um dos herdeiros da música de intervenção?
Acho que durante muitos anos foi o único. A sua raiz era uma música de celebração de festa e de unificação dos bairros da Nova Iorque afro-americana e latina, bastante marginalizada. Estabeleceu-se pela via da festa e da celebração, para tentar essa unificação dos grupos e dos gangs e dos bairros rivais. Depois, uma parte dos rappers dedicaram-se à canção de protesto, de denúncia, de reportagem daquilo que se passava nos bairros: da violência policial ao racismo. Fizeram do rap uma importante forma de afirmação daquela comunidade tão distante do discurso do poder. O rap tem imensos subgéneros e nem sempre de protesto, diria até que cada vez menos. Em Portugal, dos anos 90 ao 2000, não era cool cantar em português e muito menos falar daquilo que se passava nas ruas, nas escolas, nos bairros. Os rappers da periferia de Lisboa – no Porto não há tanta presença de afro-portugueses – fizeram o serviço público de documentar a década, cantando em português, falando do racismo, dos problemas da habitação, da segregação urbana.
Onde entrava mais a polícia do que a política.
A violência policial, o desamparo identitário de não serem tratados como portugueses, tendo nascido em Portugal, e não serem cabo-verdianos ou angolanos. Se um sociólogo fizer análises de conteúdo dessa música que vem do rap, sobretudo da periferia de Lisboa, terá um retrato muito interessante das margens, das pessoas demasiado distantes dos media, dos partidos políticos, sindicatos, do acesso à cultura mais prestigiada. Um trabalho de protesto e de denúncia. Durante essa década a música do pop ao rock não estavam interessados em cantar em português, muito menos falar de coisas sérias. Os rappers resgataram a tradição de Abril, contando as micro-histórias que compõem a história com H grande – distantes dos discursos dominantes.
Há aqui alguma relação entre o Rap e o Fado?
Há imensas. Não só por ser uma música urbana. O fado ascendeu à condição de música nacional, o rap não. Mas é das músicas mais ouvidas do mundo. Ascenderam aos holofotes, vindos da margem. No caso do fado, das casas de prostituição, das tascas. No do rap, dos bairros mais periféricos. Além dessa genealogia, ambos os estilos tomam o poema como o centro de tudo. No fado, apesar da guitarra portuguesa ter muito protagonismo, os fados tradicionais são uma espécie de standard de que cada fadista se apropria para cantar o seu poema. Mas o poema mais importante é a estrutura do poema que dita a estrutura melódica, é o poema que vai fazer com que a interpretação do fadista seja ou não memorável. Gosto de escrever para o fado porque os fadistas, tal como os rappers, não cantam, cospem. Há uma intenção de emanar a cada palavra a sua emoção. E depois o fado tem essa característica que o rap tem, de contar as pequenas histórias. Muito fado fala de emoções, mas muito conta a história de Lisboa, dos bairros, das tascas, das pessoas, as personagens que, tal como o rap, documenta essas micro-histórias, todas juntas, compõem a história com H grande que eu falava há pouco.
O fado e o Rap contam a história de Lisboa?
Nós podíamos ir agora analisar o fado sobre Lisboa, sobre as suas personagens, as suas profissões, bairros, tascas, e tínhamos um retrato, década após década, das dinâmicas, das crises. O fado da Amália em que ela cantava que a Mouraria estava degradada e agora estava bonita. Passadas décadas são capaz de cantar que outra vez a Mouraria está degradada. O fado também documenta muito a história dos bairros, tal como o rap. Quando consegue ser um retrato da sua época, a música fica ancorada no nosso espírito, nos próprios ideais, e faz parte da corrente composta por muitos elos da tradição oral que carregamos enquanto povo. Se após cada geração renovarmos esse compromisso com quem conta as nossas histórias, falar o que são os ciclos históricos, políticos, sociais e económicos, a música ganha para mim um valor acrescentado. Falando só de amor, de coisas emocionais, muitas vezes só sabemos que aquela canção é de uma década pela sua estética, não pelo conteúdo. Há músicas que vivem dessa intemporalidade. Eu gosto dessa característica do fado e do rap ancorados no seu tempo. Por exemplo, a Casa da Mariquinhas que eu escrevi para a Gisela João, em 2013, é uma versão do tema “Vou dar de beber à dor” da Amália que já por si aludia à canção do Alfredo Marceneiro e depois da Hermínia Silva que falava da Casa da Mariquinhas. Quando Marceneiro cantou a primeira casa da Mariquinhas, era uma casa de meninas. Depois, quando a Amália canta “Vou dar de beber à dor”, já era uma casa de penhores e quando eu escrevo a letra, da versão cantada pela Gisela João, a casa já não é de penhores, já está emparedada. Estávamos em plena troika. Passado uns anos, reescrevi a letra outra vez, e saiu esta semana, como sendo o hostel da Mariquinhas.
Falemos da obra. Mão Verde como nasceu?
Começou por ser um concerto. O Teatro São Luiz convidou-me, em 2015, para fazer uma temporada de concertos para crianças e não tinha um repertório, a não ser uma canção ou outra que pudesse adaptar ao público mais jovem. Convidei o Pedro Geraldes para fazer a música, escrevi as letras e fizemos meia dúzia de concertos na mesma semana no S. Luís. As pessoas gostaram tanto que no final do concerto perguntavam onde podiam comprar o disco. Decidimos gravar, fizemos mais duas canções e gravamos o disco em 2016. Foi o nosso primeiro disco. É um disco que também é um livro e que não só tem as letras das canções, com algumas ilustrações, como também tem notas informativas que contextualizam cada uma das letras. Decidi fazer do Mão Verde um espetáculo, num primeiro momento, e depois um disco e um livro ecologista.
Porquê?
Os meus discos têm sempre uma boa dose daquilo que me preocupa, daquilo que eu acho que é transformar o mundo. As crianças têm um interesse muito espontâneo nos insetos, nas plantas, na terra, na observação do clima. Nesse olhar, nesse encantamento, muitas vezes encontro um atalho muito rápido para poesia. Podia ter um caminho para a escrita poética e musical que apelasse ao público infantil, e resgatasse o meu próprio imaginário infantil. Os pais vêm aos concertos porque os professores começaram a trabalhar as músicas na aula, a fazer trabalhos a partir delas. Depois começámos a tocar muito e alargámos a banda ao António Sardinha e à Francisca Cortesão. Em quarteto decidimos fazer um segundo disco-livro. Tem sido um processo muito interessante, do que nos interessa fazer também musicalmente. Brincamos muito aos estilos, uma canção é inspirada na música mexicana, a seguir rap puro e duro, é punk. E vamos brincando e falando coisas sérias.
Há agora uma petição contra a redução da quota da música portuguesa na rádio.
É um retrocesso num caminho que vinha a ser positivo para todas as partes. A quota começou em 2005, numa altura em que as grandes rádios passavam cerca de 3 a 5% de música portuguesa, e desde que passou a existir uma quota de 25%, as audiências das rádios só subiram. Gerou mais público, mais concertos e mais postos de trabalho, mais riqueza. Num país em que está provado que não havendo quota a tendência é para diminuir o número de canções de música portuguesa que passam na rádio, ainda faz sentido ter esse tipo de incentivo legal. Se fazemos campanhas para as pessoas comprarem fruta portuguesa, têxtil de produção portuguesa, não faz sentido não o fazermos com a produção cultural.
O 25 de Abril é um momento histórico para todos, mesmo para os que nasceram depois. Há um conjunto de valores ameaçados.
Tem a ver com a própria ideia de liberdade e os valores associados à liberdade, a saúde, educação, comida no prato, justiça e habitação. Sem isso não há liberdade real e concreta. A Liberdade não é um dado adquirido, é uma conquista quotidiana e não podemos adormecer à sombra das conquistas da Abril ou da civilização. A qualquer momento, qualquer crise, qualquer oportunidade de regresso da extrema direita ou até qualquer outra dinâmica geopolítica, como agora a guerra da Ucrânia, há sempre retrocessos. Os direitos das mulheres são um exemplo. Qualquer oportunidade, tentam retroceder na interrupção voluntária da gravidez, no acesso ao trabalho, na afirmação das mulheres no espaço público. Acho que o problema menos resolvido pelo 25 de Abril foi o da habitação que agora nos explode nas mãos. Perante a dinâmica do crescimento do turismo, da especulação imobiliária, do investimento em fundos, toda a questão do alojamento local, criou-se uma tempestade perfeita. As pessoas não conseguem ter acesso à habitação digna e vão cada vez mais perdendo o acesso à cidade. Arrendar já era difícil, muitas pessoas foram empurradas a comprar, até porque não havia outra solução e agora sobem as taxas de juro e as pessoas deixam de poder pagar a prestação, num momento em que pagar a conta do supermercado já é difícil. As cidades passaram a ser um objeto de fruição turística e não um local de vida para os seus habitantes.
Se tivesse que associar uma música sua ao 25 de Abril que música escolheria?
Medusa. Fala da violência contra as mulheres. Acho que na geração da Abril, onde houve muitas mulheres fortes do lado da resistência, na clandestinidade, como muitas perseguidas, as três Marias por exemplo, mas o cancioneiro de Abril não deu protagonismo às vozes das mulheres e às suas causas – uma lacuna importante. Se tivesse de acrescentar uma música acrescentaria a Medusa, por falar das várias formas de violência contra as mulheres.
Já fez um espetáculo n’A Voz de Operário.
Sim, foi com a Sara Tavares e com a Eva RapDiva no espetáculo “As mulheres da Lusofonia”.
E quando pensa voltar?
Adoro aquela sala. Gostava muito de voltar agora com a Mão Verde. A Voz do Operário tem um grande papel na Educação e as crianças d’A Voz do Operário seriam uma boa plateia. Numa instituição que trabalha em prol da educação com espírito crítico, a favor da liberdade, acho que a ecologia faz todo o sentido a acrescentar ao trabalho que A Voz do Operário já faz.