No orçamento para a Saúde, 40% das verbas destinam-se aos privados, quer através dos serviços convencionados e externalizados como dos medicamentos. Mesmo quando se fala de um crescimento de 7,5% na despesa do orçamento para o SNS de 2022, em comparação com o de 2021, o peso dos serviços que o SNS subcontrata por incapacidade de os garantir é uma realidade cada vez mais pesada. No Orçamento do Estado (OE) de 2022, em comparação com os dados provisórios do OE de 2021, verifica-se um crescimento da despesa de 935 milhões de euros. Ao nível das despesas correntes, o maior aumento vai para o fornecimento de serviços externos, mais do que o aumento de gastos com pessoal.
Na nota explicativa do Ministério da Saúde, verifica-se que a dívida do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a fornecedores é um encargo que debilita desde logo a capacidade de investimento. Em 2022, o que o OE prevê é que o ano termine com um saldo negativo de 1.121 milhões de euros.
E, não é de todo indiferente saber-se que, segundo dados do Relatório Primavera 2019, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, em 2017 as despesas dos portugueses em saúde, eram de 2066 € per capita (9% do PIB), abaixo dos valores da União Europeia que é de 2773 € per capita, 9,6% do PIB. Também a despesa em medicamentos em Portugal, segundo o mesmo relatório, situa-se 26% abaixo dos valores da União Europeia (208 € per capita para 417 € per capita).
Acresce que, por exemplo, em 2019, a despesa pública em saúde cobria apenas 60% do total da despesa em saúde. Os restantes 40% são pagos pela população, diretamente ou através de seguros de saúde e outros sistemas privados, segundo dados da OCDE.
Parece claro que a Saúde é uma área com suborçamentação e que, para além disso, o Estado continua a gastar mais no financiamento da saúde privada do que a robustecer o sistema público. Segundo dados do INE, entre 2000 e 2019 a despesa pública com hospitais privados aumentou 300%.
Por falta de meios, o Hospital de Setúbal manda fazer as ressonâncias magnéticas dos seus utentes no privado.
Há um caso paradigmático que ilustra bem esta realidade. Por falta de meios, o Hospital de Setúbal manda fazer as ressonâncias magnéticas dos seus utentes no privado. Mas, o que paga num ano pela externalização desse serviço, daria para comprar o referido equipamento. Este exemplo é apenas um dos muitos casos em que o Estado poderia, com investimento rentabilizado num curto prazo, internalizar serviços e poupar na folha orçamental.
Talvez isso explique o porquê de, nos últimos 20 anos, enquanto os hospitais públicos reduziam 4000 camas no internamento hospitalar, os privados terem criado nesse mesmo período 3000 camas. O negócio da saúde é prometedor, como se deduz lendo os dados do INE referentes a 2020. Entre consumo privado e despesa pública a saúde mobiliza mais de 20 mil milhões de euros. Ou, como disse Isabel Vaz, administradora do Luz Saúde, “melhor que o negócio da Saúde talvez só a Indústria do Armamento”.
O efeito, por exemplo, na pandemia, desta redução de camas dos hospitais públicos, que mais parece uma transferência para o privado, merece de resto uma referência do Conselho das Finanças Públicas que, no documento sobre a Evolução Orçamental do Serviço Nacional de Saúde entre 2013 e 2019 considera que a crise provocada pela pandemia “veio revelar, logo numa primeira fase e entre outras insuficiências, o baixo número relativo de camas de cuidados intensivos por habitante”.
A médica e professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, Isabel do Carmo, escreveu no Público que “em 2011, o protocolo do memorando da troika, sugeriu um corte de 100 milhões de euros nos Hospitais Públicos. O Governo cortou 400 milhões, quase tanto como pagou aos hospitais privados em serviços, excluindo exames auxiliares de diagnóstico.”
Também em matéria de recursos humanos a relação do Estado com os profissionais do SNS acaba por ser um forte incentivo à fuga para o privado. A melhoria de condições laborais dos seus profissionais não é suficientemente atrativa, a contratação é um processo burocrático demorado e a necessidade urgente leva à subcontratação, pagando o Estado valores mais altos do que aqueles que paga a um profissional do SNS.
O Estado continua a gastar mais no financiamento da saúde privada do que a robustecer o sistema público.
Por exemplo, num recente estudo, o economista Eugénio Rosa, citando dados de abril de 2022, do DGAEP -SIOE e do INE, refere que “mesmo em termos brutos, a remuneração média dos médicos em 2022 é inferior à de 2011 em 2,1%; e, em poder de compra, a remuneração média dos médicos é, em 2022, inferior à de 2011 em 18%; no caso dos enfermeiros é inferior em 8,4% e a dos Técnicos de diagnóstico e terapêutica é 10% inferior à de 2011”.
Aqui está mais um dos nós górdios do sistema. Nada que o Estado não saiba. Os vários sindicatos dos profissionais de saúde vêm reclamando a contratação de mais profissionais, mas também vão referindo que para que os concursos não fiquem vazios e os profissionais que lá estão não abandonem o SNS, não basta contratar, é preciso melhorar as condições de trabalho, salariais, de carreira e a internalização de mais serviços. Isto explica a outra causa da degradação do SNS.
Ainda que o número de profissionais tenha efetivamente aumentado, isso não impediu que no período de férias, as manchetes dos jornais e os alinhamentos dos canais televisivos voltassem às notícias de serviços de urgência fechados, hospitais em serviços mínimos.
O relatório do Observatório Português do Sistema de Saúde, citado pelo Público, refere um aumento de 30 mil profissionais de saúde, entre 2016 e 2022 e aponta a quebra de produtividade como motivo para, ainda assim, as crises do SNS em períodos de férias se manterem. Para a quebra da produtividade, apesar do reforço de profissionais, o relatório refere a disrupção de equipas, o aumento do absentismo e concorrência do setor privado. Não sabemos se a ordem é exatamente esta, mas Nuno Clode, ginecologista e obstetra, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Saúde Materno-Fetal e coordenador dos Serviços de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital CUF de Torres Vedras, que em tempos dirigiu este serviço no Hospital Santa Maria, dá algumas explicações para a sangria de profissionais do setor público para o setor privado.
Entrevistado na RTP, Nuno Clode deu o seu exemplo: “No SNS, no topo de carreira, como diretor de serviço ganhava 3 mil euros brutos, o que equivaleria a 1800/1900 líquidos por 35 horas, mais urgências 4 vezes por mês (12 horas extraordinárias). No serviço privado, com acordo de trabalho de 25 horas por semana, ganho o dobro.”
E a questão do horário não é despicienda, já que, como refere Nuno Clode, os médicos têm necessidade de “tempo para estudar e para a produção científica”. Ora, explica o clínico, “os serviços no SNS, muito focalizados nas urgências”, e os profissionais, mesmo os mais novos acabam por deixar para trás “muitas das outras coisas que são atrativas na especialidade”.
O clínico refere que à exceção dos grandes hospitais, a maior parte das urgências de Ginecologia e Obstetrícia são asseguradas por tarefeiros, sobretudo em hospitais mais periféricos. Ora, não se pode exigir aos tarefeiros, que não têm nenhuma relação com o serviço, que cumpram para além do que está contratualizado.
O subfinanciamento da Saúde é, de resto, uma conclusão do Conselho das Finanças Públicas que, na nota introdutória ao documento onde analisa a Evolução Orçamental do Serviço Nacional de Saúde, refere que “a despesa corrente representa, desde 2017, 99% da despesa total (10.681 M€ em 2019). No período considerado (2013-2019), as despesas de capital nunca excederam 2% da despesa total, o que traduz uma reduzida expressão do investimento. De entre a despesa corrente em 2019, as despesas com pessoal representam 42%, os fornecimentos e serviços externos 39,3% e compras de inventários 18,3%”.
Este subfinanciamento do nosso Serviço Nacional de Saúde foi sempre pautado por uma justificação de rigor orçamental para cumprimento do défice, um desígnio com que Bruxelas blindara o Orçamento português. Para evitar o aumento no orçamento dos custos fixos com os profissionais de saúde, serviços, meios e equipamentos, o Governo aprova investimentos que depois adia ou não executa, usando a morosidade burocrática, a cativação e outras, para depois recorrer à subcontratação externa. O que nos diz a folha do orçamento é que, afinal, o barato saiu caro.
Ora, esta obsessão contrasta depois com as facilidades dos apoios públicos que a União Europeia fez chegar às multinacionais e ao setor farmacêutico durante o período COVID-19.
A Pfizer, por exemplo, teve a garantia da União Europeia da compra, paga antecipadamente, de centenas de milhões de doses de uma vacina contra a COVID-19 e, apesar da Organização Mundial de Comércio prever, em caso de emergência sanitária, o levantamento da blindagem da patente, exatamente para garantir a sua distribuição pelos países mais pobres, a União Europeia permitiu que a multinacional dos EUA robustecesse o seu negócio à custa da pandemia. A Pfizer veio anunciar que durante a pandemia havia duplicado os seus lucros, atingindo os 22 mil milhões de euros enquanto, protesta a Oxfam International, “quase metade da população mundial ainda não tem acesso a vacinas que salvem vidas”.