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Alexandra Kollontai e a emancipação da mulher trabalhadora: coordenadas para os dias de hoje

150 anos passados do nascimento de Alexandra Kollontai, assinalamos o seu histórico legado de luta, resistência e organização política revolucionária.

A conjuntura que, em Março de 1872, conhece o nascimento de Kollontai é de profunda convulsão social. Apesar da sua protegida infância num contexto familiar burguês, a teórica marxista adquire, não alheia à pulsação da cidade que a acolhe – São Petersburgo era, à época, um dos mais relevantes focos do movimento operário russo -, uma clara consciência das injustiças sociais que marcavam o país. Mais de 70% da população era camponesa, 80% da população era analfabeta e vivia-se em condições de extrema precariedade e de violenta repressão dos movimentos operários pelo governo czarista. O aparato estatal e económico espelhava a tradicional e hierárquica estrutura familiar, que se mostrava pilar fulcral da sociedade russa e que motivaria Kollontai a participar intensamente na organização das mulheres trabalhadoras, primeiro nos locais de trabalho e, de seguida, no seio do Partido Social-democrata e do Partido Bolchevique. Mesmo quando vem integrar a maior corrente de oposição dentro deste último – a chamada “Oposição Operária”, consolidada em 1920 com o findar da guerra civil – e abdica, por conseguinte, dos cargos que ocupa no Governo Bolchevique, manter-se-á continuamente firme no seu compromisso com as tarefas dentro do Partido e com uma política revolucionária proletária.

A luta pela emancipação política, económica e sexual da mulher determinará de forma inabalável o percurso de Kollontai, acompanhando Lenin no reconhecimento da independência económica da mulher como condição essencial para o triunfo da Revolução de 1917 e valorizando o trabalho feminino em todas as esferas da economia russa. Assim, o profundo impacto da Revolução de Outubro na situação do proletariado feminino vem concretizar, num processo sem precedentes na história mundial, a participação da mulher em todos os sectores da vida pública, socio-política, material e cultural do país, em condições de integral dignidade e igualdade com os seus pares masculinos, desestabilizando os pressupostos comuns da sua condição de subalternidade.

Retomando as pioneiras teorizações de Engels sobre a família, a propriedade privada e o Estado, Kollontai concebe o casamento enquanto instituição reaccionária e cárcere primeiro da mulher trabalhadora, amarrando-a ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos (trabalho improdutivo que deveria exercer a par do seu trabalho assalariado, produtivo). Obedecendo ao modelo burguês de transmissão linear do património adquirido, o casamento instituía, por conseguinte, a obrigatoriedade da monogamia e da servitude da mulher.

É no seio do proletariado que a autora identifica o necessário processo de desintegração da família, fazendo ruir a velha moral e cedendo as coordenadas de uma nova ordem, baseada na união livre entre homem e mulher e caracterizada pelo respeito mútuo, solidariedade e camaradagem. Eliminando a produção capitalista e a propriedade privada, eliminar-se-ia o carácter indissolúvel do casamento que sustentava a posse absoluta de um ser pelo outro – e que conduzia, segundo Kollontai, à prostituição e ao adultério. Não mais dependendo do marido, a força nos braços da mulher será enfim a medida do seu sustento.

Kollontai, nomeada Comissária do Povo para a Saúde e Bem-estar Social (a primeira mulher a liderar um departamento do Estado), impulsiona legislação de impacto crucial na vida das mulheres trabalhadoras. A par do sufrágio universal, instituía-se a despenalização do aborto, o direito ao divórcio sem restrições e o reconhecimento legal de novas formas de relacionamento entre homens e mulheres – das quais se exclui o casamento pela igreja. A assim contextualizada defesa de uma união de afectos e camaradagem no lugar da tradicional família, afirmou-se um dos mais marcantes (e mais difíceis de acompanhar, à época) esforços de Kollontai.

De acordo com os princípios da Revolução, instituía-se a protecção legal e material à infância e à maternidade. Tomava, o Estado, findadas as relações de produção capitalista, a tarefa de assumir as funções sociais da família, disponibilizando creches, recreios, cantinas, livros escolares, e libertando a mulher operária do trabalho doméstico e do cuidado dos filhos. O Estado comunista transformara a educação da juventude numa real função social e num esforço comunitário em condições de solidariedade.

As considerações de Kollontai em relação à prostituição são ainda extensamente actuais, lembrando a inexorável incongruência entre uma sociedade sem classes e a exploração sexual da mulher pelo homem. À semelhança de Lenin, Kollontai olha a prostituição como contradição dos princípios básicos de uma república proletária soviética, pois distancia-se irreconciliavelmente do trabalho produtivo, e organizado, ao serviço da comunidade. Também os laços entre trabalhadores se desmoronam, pois comprar o acesso sexual ao corpo de uma mulher impossibilita que se a olhe como camarada, sua igual.

Embora de consequências profundas para a sociedade Russa e o resto do mundo, as conquistas da Revolução de Outubro no âmbito dos direitos das mulheres acabariam por não se mostrar proporcionais à força e envergadura das restantes transformações políticas e económicas. Acompanhavam-nas as dificuldades de reflexão colectiva – atormentadas pelos enraizados velhos paradigmas nesta matéria, em especial nos meios rurais – e não chegariam tão longe quanto Kollontai havia proposto, sobretudo no que à emancipação sexual diz respeito (particularmente incompreendida no período estalinista).

Não obstante, ler Kollontai hoje afigura-se de renovada actualidade, contendo em si as coordenadas para pensarmos uma real emancipação da mulher – condição inadiável da transformação social e de um futuro mais justo, pautado pela igualdade e camaradagem. Retomando o apelo da histórica revolucionária russa em 1916: “Ao trabalho, camaradas, ao trabalho!”

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