Opinião

Lisboa

Crónica do cão que mordia a própria cauda

Para o jardim do meu bairro convergem todos os dias crianças que brincam no parque infantil e nos relvados, pessoas que passeiam os seus cães e sobre eles conversam e velhos que jogam às cartas nas mesas que lá há ou que em grupos formulam opiniões sobre o que se passa à sua volta.

Há dias um desses grupos observava um cão que em voltas e reviravoltas tentava morder a sua própria cauda, talvez para se ver livre de qualquer incómodo que o atormentasse. 

Diz um velho, sabe-se lá por qual associação de ideias: parece o “sistema” que anda baralhado a querer ver-se livre de alguns dos seus males….sem mudar nada de essencial.

Quem assim falava era tido como leitor assíduo e comentador esclarecido, mas os olhares que todos os outros lhe lançaram obrigou-o a juntar esclarecimentos, o que ele fez dizendo: temos assistido, nestes últimos tempos a um fenómeno curioso: pessoas que até então eram reconhecidas como honestas e úteis à sociedade, louvadas e condecoradas, são agora publicamente interrogadas no fórum mais alto da Nação, detidas pelas polícias, acusadas pela justiça…e defendem-se dizendo que são pobres ou infelizes nos negócios; que a falta de transparência de que os acusam se filia no princípio popularmente aceite de que “o segredo é a alma do negócio” e que a ousadia que conduz ao seu enriquecimento oculto se insere no espírito do adágio “quem tem unhas é que toca guitarra”.

Um deles afirmou que tudo era business, que tudo era legal e que se sentia tranquilo e se mostrava risonho e outro dizia que mesmo que tivesse perdido milhões em alguns negócios, vivia bem porque tinha ganho muito mais em outros e tinha uma boa reforma.

Respondeu “o sistema” (liberal, elogioso da iniciativa privada, contrário ao papel intervencionista do Estado) que sob o ponto de vista moral não seria curial que alguém acumulasse fortuna à custa do dinheiro de outros e que a sequência dos acontecimentos se apresentava desprestigiante para muitos…

Haveria que fazer qualquer coisa que não abalasse o sistema nem beliscasse valores fundamentais, como o lucro desenfreado, a especulação, a propriedade privada intocável e os sinais da acumulação da riqueza.

Como o cão que se revolta contra a sua própria cauda, sem obviamente a pôr em causa. 

Sempre foi assim e há de continuar a ser – disse um velho.

Olhe que não. Haverá certamente maneiras de não ser assim – respondeu outro.

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