O futebol é por todos reconhecido, sem margem para dúvidas, como a modalidade que mais adeptos atrai em Portugal. Talvez por esse facto, constatamos que é também aquela que mais problemas representa na esfera sócio-desportiva nacional. Por consequência desse fenómeno vemos que, ao longo de várias décadas, com maior incidência a partir do início do novo milénio, a violência associada a eventos desportivos tem sido tratada no palco político como um problema que urge ser combatido.
Em Setembro de 2019, em mais um pacote legislativo de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, resultante da alteração à Lei n.º 39/2009, fomos brindados oficialmente com uma nova figura, o “cartão de acesso a zona com condições especiais de acesso e permanência de adeptos”, agora conhecido como o cartão do adepto. Penso que é importante referir que em outubro de 2018, 15 dias antes da apresentação da proposta de lei n.º 153/XIII, que anuncia o cartão, é publicado em Diário da República o Decreto que cria a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto, a qual viria a ser responsável, entre outras coisas, pela emissão e gestão do cartão do adepto.
O cartão do adepto tem o custo de 20€, é exclusivamente para adeptos maiores de 16 anos, e tem como única função permitir aos seus proprietários a entrada numa zona com condições especiais de acesso e permanência de adeptos (ZCEAP). É fundamental informar que esta zona será isolada e, por isso, terá de garantir uma série de condições como entrada, wc e bar próprios.
Até agora pode parecer normal mas, quem já teve oportunidade de refletir e informar-se melhor sobre o tema sabe que é só aparência! Este cartão é estéril na sua missão, nunca será um pedaço de papel a alterar a natureza das pessoas. Vai aumentar a pressão e a repressão sobre os adeptos, ao mesmo tempo que cria uma imagem perigosa dos adeptos “maus” (que estão enjaulados) e os adeptos “bons”. Ao invés de procurarmos encontrar medidas que aproximem os adeptos das boas práticas, a par do que se promove por toda a Europa, vemos o governo português na sua prática contínua de marginalizar, indiscriminadamente, os adeptos. Será aceitável cortar a liberdade a uma maioria para tentar controlar uma minoria?
Desengane-se quem pensa que esta medida só irá afectar as claques, sendo certo que, em muitos jogos, quem não aceitar ser catalogado na lista dos adeptos pseudo perigosos, não terá forma de acompanhar a sua equipa num jogo fora de portas. Simplesmente existem estádios que não vão ter sectores visitantes para adeptos que não sejam portadores do “cartão da censura”.
Este cartão é uma cópia da Tessera del tifoso, uma medida que se revelou incapaz de acabar com a violência, além de afetar negativamente o próprio futebol italiano e, por isso mesmo, a sua existência foi posta em causa, acabando por ser traçado o seu fim. Espanta-nos como é possível importar uma medida de outro país em função do seu propósito, mas não se têm em atenção os impactos que a própria teve no local de origem. Por outras palavras, é no mínimo ridículo pegar numa medida com 10 anos e não ver como ela funcionou, ou se sequer funcionou!
A Associação Portuguesa de Defesa do Adepto (APDA) tem vindo a combater esta lei a partir do momento em que ela foi proposta, no final de 2018. Desde logo marcamos uma manifestação em frente à Assembleia da República, enviamos comunicações aos partidos presentes no parlamento, estivemos presentes na Audição Pública com o grupo de trabalho parlamentar responsável pelo tema, fomos incansáveis a informar a comunidade portuguesa de adeptos sobre o cartão, unimos grupos de adeptos em protestos dentro e fora dos estádios, participamos em dois fóruns de discussão onde esteve presente um número bastante considerável de grupos de adeptos, organizamos conversas abertas em vários pontos do país. Por fim, em seguimento da nossa estratégia, lançamos uma intimação em tribunal, seguida de uma providência cautelar e devido recurso. Preparamos neste momento a ação judicial ao mesmo tempo que lançamos uma Petição Pública para tentar reverter o cartão do adepto na Assembleia da República.
Perante a confirmação do regresso dos adeptos aos estádios, estamos apreensivos com as medidas que o vão reger. Percebemos que, pelo bem do futebol, num período sensível para a saúde pública existam algumas mecânicas que sirvam o propósito da prevenção. Contudo, é nossa esperança que seja uma realidade temporária e que, assim que se mostre possível, as nossas bancadas sejam o espaço de liberdade que todos anseiam.
Nunca, até agora, tinha sido vista uma ação semelhante por parte dos adeptos portugueses. Deste modo renovamos a esperança e temos expectativas que este exemplo sirva de ignição para o crescimento de uma intervenção objectiva dos adeptos, na construção de um futuro melhor para as nossas bancadas.
João Lobo, vice-presidente da Associação Portuguesa de Defesa do Adepto