Quando passam 47 anos da breve mas profunda revolução que resultou numa transformação dos campos do Alentejo, a realidade é diametralmente oposta. Agricultura intensiva, sobreexploração laboral, envelhecimento e desertificação são alguns dos problemas identificados pela arquiteta Inês Fonseca, que vive em Avis e que é uma das porta-vozes do Chão Nosso, movimento que defende a cultura, património e biodiversidade do Alentejo.
Há a sensação de que a região é um parente pobre no mapa nacional?
É mais do que uma sensação. É uma realidade e resulta da falta de investimento estrutural para esta região do país. Isto é mais gritante aqui no Alto Alentejo, onde o último grande investimento do Estado data de 2009. Foi a construção do troço do IC3 entre Portalegre e Alter do Chão. Contudo, esta estrada ainda não está concluída.
Muita mais haveria a fazer para criar melhores condições de vida nesta região. Se olharmos para as opções do Plano de Recuperação e Resiliência vemos que os investimentos estruturantes serão empregues em grandes obras no litoral.
A regionalização poderia contribuir para esbater diferenças e desigualdades?
Sim, a regionalização permitiria que os fundos fossem distribuídos de outra forma pelas regiões, sendo aqui, a nível regional, que se definia a estratégia de desenvolvimento para o território, os investimentos mais importantes. Tudo isto decidido por órgãos eleitos pelas populações, não através de uma estrutura desconcentrada da administração central que decide de forma enviusada a distribuição dos fundos disponíveis. A regionalização poderia constituir-se num instrumento de coesão territorial, chavão hoje muito utilizado, permitindo que se dissipassem as desigualdades entre regiões.
O Alentejo mudou muito nas últimas décadas. Quais as razões que levam à incapacidade de as pessoas se fixarem na região?
Nas últimas décadas, o Alentejo perdeu cerca de 40% da sua população o que altera completamente a dinâmica económica e social desta região. Para lhe dar o exemplo do concelho onde vivo, em Avis, na década de 60 do século passado, tínhamos cerca de 8 mil habitantes. Em 2019, éramos 4248. Isto significa quase 50% da população. As razões são simples: falta de emprego e de serviços públicos de qualidade. Se o teu emprego te paga miseravelmente, à primeira oportunidade, vais procurar outra solução mais longe. Se não tens um emprego estável e sabes que não tens uma urgência pediátrica na tua região, que o teu filho quando chegar ao 9.º ano tem que sair do seu concelho para terminar a escolaridade mínima obrigatória, começas a colocar os prós e os contras no prato da balança.
Em 2009, fechou uma fábrica de laticínios em Avis, o que deixou centenas sem emprego, forçando mais pessoas a abandonar o concelho por falta de perspetivas. Isto foi feito com um grande empurrão do governo da altura que entregou uns milhões a fundo perdido para a deslocalização da fábrica para o litoral. Ora, para além dos empregos diretos na fábrica, há os indiretos e as explorações leiteiras que existiam no Alto Alentejo. Em 2000, existiam 400 explorações leiteiras e em 2011 havia registadas apenas 31 explorações.
Quanto menos pessoas existem no território, menos serviços, menos comércio, menos oportunidades de negócio, isto gera maior despovoamento. É um ciclo vicioso que só se consegue travar com investimento público.
É uma região envelhecida e desertificada. Que tipo de políticas é que poderiam levar a uma reversão da atual situação?
Da mesma forma que entregaram milhões a fundo perdido para deslocalizar uma fábrica de laticínios de Avis para o litoral podem patrocinar o contrário ajudando a fixação no interior. Este é o principal problema. Os grandes investimentos são canalizados para outras regiões e os subsídios no apoio à produção não ajudam na criação de mais valias. É uma questão de políticas. A política de centralização de serviços públicos que tem ocorrido nas últimas décadas com redução e deslocação de recursos humanos é contrária àquilo que o território necessita.
Entre os que defendem a agricultura intensiva como expressão de modernidade está implicita a tese de que não há outra alternativa para este território. Sem esta agricultura “tecnologicamente avançada” restará a desertificação do território, o empobrecimento da economia local e regional e uma maior dependência nacional de produtos agrícolas importados do exterior.
Ora nós defendemos o contrário, esta agricultura intensiva não gera produtos variados necessários à nossa alimentação diária. São hectares e hectares de olival e amendoal. A cozinha alentejana utiliza a azeitona e o azeite, sim. Mas, e os restantes ingredientes necessários à gastronomia tradicional que tanta fama nos traz? É esta a agricultura que nos irá abastecer dos produtos indispensáveis à nossa alimentação diária? De onde vêm os produtos para a nossa cozinha? Com uma outra política de apoio à produção não teriamos um território diferente? Mais justo e mais desenvolvido?
Houve mudança no tipo de produtos agrícolas predominantes?
Nas zonas onde existia regadio havia produção de tomate e outras culturas de regadio. Nas zonas de sequeiro, o olival era conjugado, numa mesma parcela, com outras atividades agrícolas, como a pastorícia, ou a inclusão de culturas secundárias. Hoje, o território está a ser invadido pelas culturas intensivas. O acesso à água é condição essencial. No Baixo Alentejo, na região de influência do Alqueva, isto é mais gritante, porque passou-se de um cenário de agricultura de sequeiro para regadio. As culturas que predominam no Alentejo, actualmente, são a olivicultura, o amendoal que têm vindo a surgir na área de influência de albufeiras. Claro que se mantém a vinha, a produção de carne, forragens entre outras culturas de sequeiro, mas não têm a escala das culturas intensivas que têm substituído tudo. O próprio montado está em falência correndo sérios riscos, havendo mais que um ou dois exemplos de corte massivo de azinheiras para a plantação de culturas intensivas.
Que tipo de mão de obra é que trabalha hoje na agricultura? São conhecidos cada vez mais casos de trabalhadores imigrantes sem direitos e sobreexplorados.
Proliferaram as empresas de trabalho temporário que têm como característica principal a “subsubcontratação”. Um encarregado fica responsável por uma carrinha de homens e mulheres, muitos com baixa escolaridade, desconhecedores dos seus direitos, que não têm cópia do seu contrato de trabalho nem tão pouco recibos.
Tratam-se de trabalhadores indiferenciados que fazem todo o tipo de trabalho agrícola. Desconhecem a duração do seu vínculo que é na generalidade a termo certo ou incerto durando enquanto durar determinada campanha ou serviço. Os trabalhadores são deslocados de uma herdade para outra para trabalhar.
São trabalhadores com vínculo muito precário que não têm estabilidade nenhuma. O facto de trabalharem para uma Empresa de Trabalho Temporário não permite a estes trabalhadores aceder a qualquer tipo de crédito. É só pensar quantos créditos tem cada um de nós para comprar uma casa ou um carro ou até um eletrodoméstico. Agora pensemos em quantas casas há para vender no Alentejo e é fácil ver o contributo que estes vínculos dão para o despovoamento.
A precariedade tem ainda mais duas consequências particularmente graves: a degradação das condições de trabalho e a miséria. A degradação das condições de trabalho é uma consequência do medo de perder o emprego que leva a que o trabalhador se sujeite a quaisquer condições, seja a desregulação dos horários ou a falta de equipamento de proteção individual. A miséria é uma consequência dos contratos de curta duração que não cumprem o prazo mínimo para o subsídio de desemprego, o que deixa os trabalhadores sem qualquer rendimento quando acabam uma determinada campanha.
Depois, quando falamos de trabalhadores imigrantes, que vêm de sítios onde as condições de vida são muito piores do que aquilo que encontram aqui, tudo isto se agrava. Se há trabalho, recebem. Não havendo, não recebem e ficam à deriva: sem trabalho, sem auxílio, correndo o risco de serem repatriados.
Com a declaração do estado de emergência, houve vários trabalhadores abandonados à sua sorte, sem dinheiro para pagar a renda e sem dinheiro para pagar a sua alimentação. Há histórias dramáticas, pessoas encurraladas, que sobreviveram com ajuda alheia e com dinheiro que familiares mandam.
Em 2019, Portugal era o terceiro maior exportador de azeite da UE. Pelo que relata, essa riqueza não parece ser distribuída.
As empresas que exploram estas monoculturas recorrem a maquinaria e a operacionais externos, trazem os produtos e bens necessários à produção e utilizam mão de obra externa e sazonal. Os resultados destes investimentos são acumulados por sociedades externas que os aplicam noutras regiões ou noutros países. Ou seja, a riqueza criada, porque estas culturas dão muitos lucros, é aplicada bem longe do local de produção e do país de produção.
Sobre a tão elevada quota de exportações e o aumento do produto interno bruto era importante saber o que fica neste território. A resposta é simples. Fica uma paisagem em agonia, despida de identidade, onde sobrarão solos esqueléticos onde não será possível plantar nada, que continuarão a ser alimentados com produtos quimicos, mantendo um ciclo vicioso. Ficará um território despovoado, porque ninguém quererá viver no meio de manchas contínuas de cultura intensiva.
Qual o peso de empresas estrangeiras na produção agrícola no Alentejo?
Cerca de 70% do território agrícola da região do Alqueva mudou de mãos nos últimos dez anos e o preço da terra por hectare aumentou seis vezes nos últimos 15 anos. O latifúndio, que nalguns casos deu lugar ao megalatifúndio, tem vindo a aumentar e é maioritariamente, propriedade de seis grupos económicos ou fundos imobiliários – Elaia, De Prado, Olivomundo, Aggraria, Innooliva e a Bogaris – na sua maioria espanhóis que detêm 65,5% de toda a área de olival. Isto estende-se até Portalegre, onde os grupos Elaia e De Prado possuem muitas herdades próprias e arrendadas.
Numa região com longos períodos de seca, a gestão dos recursos hídricos no Alentejo é adequada?
Os argumentos de que este tipo de cultura assegura uma gestão muito eficiente da água não nos convence. A utilização de recursos hídricos deve ser avaliada, dando preferência a culturas regadas que sejam geradores de bens alimentares necessários e de retorno económico para o território.
A utilização da água deve não só ser amplamente debatida como devem ser tomadas as medidas adequadas. A opção entre culturas permanentes ou culturas temporárias e o peso de cada uma no contexto da área regada, bem como a opção pelas culturas de primavera ou de inverno, devem estar ligadas a esta questão. Otimizar o uso da água, combater a sua escassez e dar-lhe o uso adequado. O que na nossa opinião também passa por processos de planeamento. Deixar esta questão ao livre funcionamento dos mercados e do agronegócio não é um bom caminho. Um bem precioso como a água tem de cumprir também uma função social.
A revolução de Abril teve um profundo impacto no Alentejo com a reforma agrária. O que sobra dessa experiência?
Muito pouco, muitas histórias por contar. Antes da revolução de Abril, os trabalhadores rurais, em particular no sul do país, trabalhavam muitas horas por salários miseráveis. Quando não havia trabalho passava-se muita fome. As diferenças sociais iam-se agudizando levando a lutas pela melhoria das condições de trabalho e pela redução das horas de trabalho diário.
Foi uma experiência importante, mas que, com a alteração da correlação de forças, foi extinta, mas mantém no essencial um aspecto fundamental: a terra cultivável deve ter uma função social, deve ser utilizada de forma justa e com vista à necessidade de produzir alimentos para quem habita os territórios. Hoje o latifúndio continua a dominar o Alentejo e há uma tendência de reconcentração da posse da terra.
Considera que a reforma agrária é um projecto com atualidade? Ou seja, a transformação que o Alentejo precisa passa também por aí?
Continuo a achar que a reforma agrária continua a ser necessária. Hoje, mais do que nunca, percebemos que este não é o caminho. Não me parece que a solução pudesse ser igual à experiência anterior. A distribuição da terra e a decisão do que nesta se produz deve ser sujeita a regras definidas pelo Estado. Para alcançarmos a soberania alimentar, o Estado deve criar regras para definir que alimentos devemos produzir em função da terra, da disponibilidade e da necessidade de água.
Não é isto que se passa. Estas culturas resultam de investimentos de capitais financeiros que não estão comprometidos com o território, que não produzem alimentos necessários à nossa alimentação, mas são subsídiadas. Estima-se em cerca de 800 milhões de euros os apoios públicos dados desde 2007 à olivicultura alentejana. O agricultor com ligação à terra que respeite a identidade do local está em risco de desaparecer. Está a dar-se a financiarização do território. Esta subsidiarização permite alugar a bom preço os terrenos a terceiros, recebendo os proprietários uma renda fixa agradável. Até para aqueles que gostariam de fazer agricultura é vantajoso alugar o terreno para estas práticas, alienando o futuro das suas próprias terras.