O magno objectivo do lucro numa economia capitalista não se rege estritamente pelas leis do estado ou conjunto de estados em que funciona. Na verdade, as leis num contexto capitalista correm sempre atrás do delito e os meios do capital estão sempre em vantagem. A palavra “corrupto” significa “podre” e não existe uma economia baseada na exploração do Homem pelo Homem que não seja, ela mesma, uma podridão. Ao contrário da ideia de que a corrupção se cinge a um conjunto de operações ilegais, ou marginais e que se encontra em algumas “maçãs podres” empresariais e governamentais também não é compatível com a realidade, na medida em que o sistema capitalista é em si mesmo, a institucionalização da corrupção.
Além dos casos de favorecimento na EDP, de subornos nas contrapartidas militares, na compra de submarinos, manifestamente à margem da legislação em vigor em Portugal, torna-se praticamente impossível contabilizar os casos de corrupção legal que pontuam a vida política nacional. Desde um Ministro das Obras Públicas que vai para a Mota -Engil, a uma Ministra das Finanças que vai para uma empresa de limpeza de dívida, e deputados que trabalham simultaneamente para bancos e sociedades de advogados que colocam milhões em off-shores, temos uma estrutura governamental que é genética e essencialmente corrupta, já que está ao serviço dos grandes grupos económicos. Tomemos o exemplo de um sistema que desvia milhões dos recursos públicos para salvar bancos que cometeram as mais obscenas trapaças com o dinheiro dos depositantes, tomemos também o exemplo de um Governo, como o do PSD/CDS que assegurou a limpeza dos ficheiros de transferências para off-shores durante o período em que o BES limpava passivo sorrateiramente, ou o do actual Governo que emprega milhões no apoio a grandes grupos económicos e grandes empresas que adquiram empresas falidas durante o tempo da pandemia e a pretexto desta. Todos esses exemplos, bastante recentes, em graus diferenciados de relação com a legislação em vigor, demonstram que o Governo, independentemente de ser constituído por PS, PSD ou CDS, se coloca no tabuleiro político como comissão de negócios dos grandes grupos económicos.
Enquanto alguns usam como bandeira o combate à corrupção para atacar a democracia portuguesa, importa afirmar que em momento algum combatem a corrupção sistémica. A utilização do combate à corrupção pelas forças do regime e pelos sucedâneos proto-fascistas não passa de uma redonda e retórica manipulação da opinião pública, capitalizando o sentimento de revolta que a corrupção gera nas massas populares. A corrupção sistémica, e mesmo a corrupção ilegal e criminosa, não merecem de nenhuma força política que não se afirme como revolucionária o tratamento sistémico que exige. O que, na verdade, procuram as forças do regime e os neo e proto-fascistas é, não o combate à corrupção mas a sua omissão. Visam torná-la visível exclusivamente por eles e escondida da generalidade da população, eliminado as estruturas de escrutínio democrático.
Também durante a Primeira República, as forças reaccionárias e os golpistas de Março, usaram a corrupção como elemento de descredibilização da república apenas para a tornar institucional, sistémica e de estado. A consolidação do fascismo em 1933, no pós-golpe de 26, tornou a corrupção o elemento central da política do Estado e colocou todo o Estado ao seu serviço, usando a força para a praticar, para a esconder e para eliminar, muitas vezes fisicamente, aqueles que se lhe opunham. Além da lei do condicionamento industrial, o governo fascista estava cheio de grandes accionistas e administradores de grandes grupos económicos, ou seja, os monopólios eram o governo.
Tal como então, hoje são muitos os que, visando tomar de assalto o que resta de Abril, retratam a corrupção, criando a ideia de que não é o sistema capitalista que é intrinsecamente corrupto, mas que é a democracia que é demasiadamente permissiva para os abutres da corrupção.
Os democratas têm o dever de afirmar que só com mais democracia se pode combater a corrupção e, especialmente, com mais democracia política e económica, criando mecanismos de controlo popular e por parte dos trabalhadores. Não é de menor importância que os que colocam o anátema da corrupção inteiramente sobre o estado são os mesmos que ilibam constantemente as empresas que corrompem e que as colocam no altar do liberalismo como os salvadores da economia. Tal não é diferente do que fez Salazar em Portugal com a entrega da regulação do mercado às próprias empresas e grémios ou, por vezes, à lei feita à medida dessas mesmas empresas; tal não é diferente da política de Mussolini em Itália que privatizou praticamente toda a indústria a pretexto da diminuição da intromissão estatal na economia. Qualquer semelhança entre essas políticas e as propostas pelos partidos neo-liberais em Portugal não é mera coincidência.
A corrupção pode e deve ser combatida, limitada, punida e só a falta de vontade política de PS, PSD e CDS, e agora também dos sucedâneos desses partidos, justifica que não se avance mais na limitação do poder dos grandes grupos económicos. Mas a principal tarefa dos democratas não é aceitar o combate à corrupção como instrumento do combate à democracia, antes é a de exigir o aprofundamento da democracia. A descredibilização da democracia que muitos usam para impor uma agenda autoritária deve sempre partir do pressuposto de que estão a usar a corrupção como cavalo de Tróia para uma agenda que retire ao povo e aos trabalhadores a capacidade de escrutinar a corrupção, de a combater com efectiva participação nas empresas e na sua gestão. É exactamente o caminho contrário que urge trilhar: o de aumentar a participação dos trabalhadores na gestão e fiscalização das empresas e o de colocar os trabalhadores no parlamento, no governo e nas autarquias. Se os trabalhadores são as vítimas da corrupção, serão eles o seu carrasco.