Opinião

História

Lénine em tempos de Covid-19

Os 150 anos do nascimento de Lénine acontecerão a 22 de Abril, em pleno desenvolvimento da crise pandémica do COVID-19, que terá um natural impacto sobre as comemorações. Em Portugal, o PCP já adiou a Conferência que tinha previsto realizar, e na Rússia, o vasto programa de comemorações foi transferido para Novembro. Fica o registo.

Monumento a Lenin en Aluksne (Letonia).

Mas o que Lénine nos exigiria, no esteio de Marx, é que dedicássemos os nossos esforços ao tempo em que vivemos e à análise concreta da realidade concreta, tendo em conta que «os homens sempre foram em política vítimas ingénuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprendem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe.»

Que distância quilométrica vai desta visão de Lénine à reaccionária rezinguice contra o povo em que tropeçamos tantas vezes, ou às utópicas ilusões sociais-democratas sobre a conciliação de classes (o «pântano», como lhe chamou).

Olhemos para esta crise, desde logo para os seus aspectos mais imediatos, mais perceptíveis: a Galp a distribuir dividendos e a despedir trabalhadores por “necessidade”; a EDP a fazer anúncios fofos, mas sem reduzir as tarifas que oprimem empresas e famílias; milhares de trabalhadores a serem despedidos sem que o Governo o reconheça, por estarem dentro de período experimental, por serem subcontratados ou por estarem a prazo; os donos dos hipermercados a ganharem fortunas com o trabalho (e agora o risco) dos seus trabalhadores mal pagos.

Mas sublinhemos igualmente o que ela revela, o papel essencial do trabalho, da produção material: um mundo de heróis que agora é redescoberto, do caixa de supermercado às mulheres da limpeza, do operário agrícola ao condutor de autocarros, do auxiliar de saúde ao carteiro, sem esquecer os que nas fábricas mantém o mundo a funcionar, e sublinhemos a dimensão colectiva da coisa, o herói colectivo que é a classe operária e todos os trabalhadores, fonte de toda a riqueza, de toda a satisfação das necessidades humanas. Apontemos o exemplo do Serviço Nacional de Saúde, conquista de Abril que há 40 anos defendemos contra a progressiva mercantilização da saúde.

Olhemos e procuremos que outros olhem mais longe: para o modo de produção, para a forma como este submete o trabalho, a produção e o acesso a bens e serviços à satisfação das necessidades do capital (multiplicação, concentração e centralização) e não das necessidades humanas; que a resposta às necessidades humanas é a socialização e não a mercantilização; que a propriedade social dos meios de produção é uma necessidade histórica.

E àqueles que comecem a divisar a necessidade de superar o capitalismo, ajudemo-los a perceber que «toda a instituição velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de umas ou de outras classes dominantes.»

Apontemos as velhas taras ao capitalismo, sem passar ao lado das formas mais ou menos democráticas que adoptam os Estados mais ou menos democráticos que permitem e legalizam a exploração e a opressão de milhões. É que o poder das classes dominantes assenta em bases muito concretas, desde logo no domínio do Estado, instrumento da dominação de uma classe sobre outras, mas também no poder do capital acumulado, na quantidade de coisas e pessoas que o dinheiro permite comprar, bem como o poder que advém da propriedade dos meios de produção e dos instrumentos de dominação ideológica.

«E para vencer a resistência dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos rodeia, educar e organizar para a luta, os elementos que possam – e, pela sua situação social, devam – formar a força capaz de varrer o velho e criar o novo.»

Esta crise, como todas, deixou mais à vista todas as insanáveis contradições da sociedade capitalista. Mas quando ela passar, para os trabalhadores, tudo continuará como está ou ficará ainda pior. Disso se encarregarão as classes dominantes, que usarão o seu domínio para salvaguardar os seus privilégios à custa dos nossos direitos.

Ou não. É sempre possível que desta vez não.

Porque inevitavelmente (mas não inevitavelmente amanhã): da resistência e da luta surgirá a oportunidade para novamente colocar a história a avançar; da capacidade e criatividade das massas surgirão as formas concretas que adoptarão esses avanços no século XXI; novamente soará e será seguida a palavra de ordem certa no momento certo, tal como aconteceu em Abril de 1917, quando Lénine apontou «Todo o poder aos Sovietes!».

(Todas as citações entre aspas são de Lénine)

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