Sociedade

Trabalho

Um Programa de Governo que se disfarça de progresso para esfolar trabalhadores

Alterar a Constituição de Abril tem sido tema central à direita, com foco na suposta necessidade de mexer nalgumas partes, nomeadamente no que ao direito ao trabalho diz respeito.

O debate gerou controvérsia entre quem, à direita, parece acreditar que os trabalhadores têm direitos a mais e quem, à esquerda, reconhece a importância dos direitos já alcançados com grande esforço e organização da classe trabalhadora. A Constituição da República Portuguesa (CRP) acabou a ser sujeita a sete revisões constitucionais, com uma que ficou suspensa pelo caminho, de 2010. A reboque da política económica da União Europeia, cada revisão funcionou como alavanca para a privatização dos setores económicos estratégicos e para o enfraquecimento da organização social, rumo à (neo)liberalização do Estado. As sucessivas alterações foram diluindo o cunho revolucionário da CRP, afastando-a cada vez mais de uma sociedade que se pretendia que vivesse além da lógica frenética dos mercados de capital e da exploração dos trabalhadores.

A discussão sobre alterações à CRP iniciado pela direita, com especial entusiasmo por parte da Iniciativa Liberal, não passou das plataformas sociais para já, mas de acordo com o , estão em cima da mesa alterações à legislação laboral que podem abrir caminho para mexer na CRP. Em defesa do aumento da produtividade e da competitividade, o Programa do Governo disfarça-se de progresso para se submeter às regras dos mercados e desdenhar as necessidades dos trabalhadores, pondo em causa direitos já estabelecidos e conquistados. Ainda que não existam propostas concretas, as metas e medidas genericamente estabelecidas levantam algumas dúvidas sobre a sua execução e impacto na vida de quem trabalha e gera a riqueza do país. Empunhando as bandeiras da produtividade e da competitividade, o Governo quer implementar medidas para “equilibrar a proteção dos trabalhadores com uma maior flexibilidade dos regimes laborais” e de “equilibrar de forma mais adequada o exercício do direito à greve”.

No que toca à flexibilização dos regimes laborais, importa saber o que se pretende alterar em matéria de tempo de trabalho e de direito a férias e como é que tais medidas são capazes de garantir a proteção do trabalhador sem que isso signifique regressão de direitos. Sobre o direito a férias, o Governo prevê que os trabalhadores possam adquirir dias de férias por sua própria iniciativa, num limite a definir entre as partes. Estaremos a falar de comprar dias de férias? Ou de dias de férias não remunerados? A ideia de flexibilizar os regimes laborais em matéria de tempo e de férias entra em conflito com o previsto no artigo 59.º da CRP e que representa uma das conquistas mais importantes dos trabalhadores e da revolução económica e social de Abril: a regulação do tempo de trabalho e do tempo livre. Comprar férias representará um esforço económico e será uma possibilidade apenas para quem tenha salários altos, deixando quem ganha menos para trás, reforçando desigualdades. O Governo opta por retirar pressão às entidades patronais para que aumentem o tempo de repouso ou de férias, exercendo essa pressão sobre os trabalhadores dando-lhes uma falsa sensação de controlo sobre o seu tempo, no que é vendido como “liberdade” contratual. Algo que, a longo prazo, poderá mesmo limitar a própria negociação coletiva. O direito ao tempo livre corre o risco de voltar a ser tratado como mera mercadoria ao dispor das entidades patronais num cenário laboral cada vez mais sujeito às soluções de mercado, com a conivência do Governo.

Sobre o direito à greve, o Governo diz querer garantir a satisfação de necessidades sociais impreteríveis face ao exercício deste direito. A revisão constitucional de 1997 já introduziu uma norma para acautelar a satisfação de necessidades sociais impreteríveis e que trouxe consigo a implementação da obrigação de serviços mínimos – refletida na atual legislação laboral. Importa reforçar que a greve é o último recurso dos trabalhadores na luta económica por direitos e que ir além do já regulado – e já limitador por si só – constitui um ataque à organização sindical e social. De acordo com deste ano, entre 2022 e 2024 deram entrada 3681 pré-avisos de greve e de serviços mínimos, abarcando os setores público e privado, em diversos setores de atividade e indústrias. Números que refletem uma organização social forte e que talvez interesse enfraquecer. Questionar os termos e condições já estabelecidos para o exercício do direito à greve traduz-se numa intenção clara de querer destruir a possibilidade de os trabalhadores se defenderem de forma estruturada e organizada, dando-se seguimento ao processo de enfraquecimento deste direito iniciado pela revisão de 1997.

O atual conluio entre o Governo e os interesses dos grandes grupos económicos pretende atacar os trabalhadores através do aparelho de Estado, mexendo na legislação laboral, no que se pode entender como uma velha prática de repressão para dizimar qualquer tipo de resistência ao poder instituído e impedir uma revolução social e económica. A legislação laboral existe para regular e tentar equilibrar a relação económica e jurídica que existe entre trabalhadores e entidades patronais e que é, por natureza, desigual. Na vez de atuar com vista à regressão de direitos, o Governo poderia empenhar-se em compreender o descontentamento dos trabalhadores e concretizar melhorias nas condições estruturais do mercado de trabalho, procurando um diálogo na concertação social que garanta condições dignas para os trabalhadores e que melhor sirva o equilíbrio entre vida e trabalho.

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