Sociedade

Museus

Descaso nos museus e os desafios que se impõem 

“Património cultural” é um conceito de Abril. As referências prévias à Revolução surgem em finais de 1973, no âmbito da criação de uma Divisão integrada no então Ministério da Educação Nacional. Conecta-se, nesta fase, o património cultural com as bandeiras-chave da ditadura que procuravam cimentar uma determinada “identidade nacional”: folclore, tesouros e arte da nação. Longe, pois, do paradigma da cultura como factor de progresso e de emancipação humana inaugurado com o 25 de Abril.

Os museus assumem um papel de relevo no cumprimento de tão elevada missão, sendo dos equipamentos culturais de maior disseminação pelo território. Ainda que se observe uma curva ascendente na criação de projectos e espaços museológicos nas últimas décadas, o que é sintomático da importância da sua função social e do potencial atrativo que estas estruturas têm, há, paradoxalmente, um enfraquecimento generalizado e gradual do papel do Estado, cuja desresponsabilização a um nível mais amplo se faz sentir também no sector cultural, quer ao nível da gestão, quer ao nível do investimento público. 

Sem recuar demasiado no tempo identificam-se dois momentos cruciais no processo de definhamento dos museus portugueses. No quadro da intervenção externa da Troika, a fusão do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, I. P. e do Instituto dos Museus e da Conservação, I. P., e consequente criação da Direcção Geral de Património Cultural (DGPC), que limitou a autonomia dos museus e se revelou uma estrutura pesada, burocrática e ineficaz, há muito contestada no sector. Mais recentemente, o Governo do PS procedeu à reconfiguração de toda a orgânica do património, através da criação de uma estrutura bicéfala: o Património Cultural, I.P. (PC-IP), responsável pela regulamentação e preservação do património arquitectónico e arqueológico, e a Museus e Monumentos de Portugal, EPE (MMP), que gere um conjunto de museus, monumentos e palácios, considerados únicos (e ainda o Laboratório José de Figueiredo e a colecção de arte contemporânea do Estado). Paralelamente a este modelo de gestão, efectuou-se um processo de transferência de competências da administração pública central para as autarquias locais, delegando nestas a responsabilidade de gestão, valorização e conservação de museus não nacionais (para além de sítios arqueológicos considerados de âmbito local). 

O cenário continua a ser o de um serviço público degradado, onde são gritantes os problemas estruturais decorrentes da depauperação dos recursos humanos e o subfinanciamento crónico dos museus. Problemas que se traduzem também numa infraestrutura tecnológica em estado de obsolescência e na escassez de bens inventariados. A estes somam-se a falta de coordenação e uniformização das práticas e o planeamento deficitário, nomeadamente na definição de carreiras e estratégias de formação. O novo modelo de gestão não só não respondeu à negligência activa a que os museus estão sujeitos há largos anos, como trouxe um avolumar de problemas já denunciados pela globalidade dos profissionais e suas estruturas representativas. 

Independentemente da figura tutelar dos museus, do seu âmbito de actuação, dimensão ou volume de receitas, há uma situação generalizada e amplamente conhecida de envelhecimento dos quadros e carência de profissionais de vária ordem (conservadores-restauradores, arqueólogos, arquivistas, vigilantes, técnicos de serviços educativos e de mediação, de recepção e acompanhamento de público, etc), situação que afecta inclusivamente os museus nacionais. Muitas destas estruturas possuem acervos e colecções ímpares, que requerem em muitos casos equipas multidisciplinares, profissionais especializados, condições de estudo e salvaguarda particulares e equipamento específico. Estas necessidades não foram acauteladas, sendo particularmente preocupantes os casos em que a responsabilidade dos museus é transferida para os municípios, uma vez que muitos destes, sobretudo os de menor dimensão, não possuem as condições técnicas, materiais ou humanas para o assegurar. Visando colmatar a falta de recursos humanos, o anterior Governo recorreu à abertura de bolsas de Doutoramento da DGPC. Para além de esta solução constituir uma solução temporária para suprir necessidades permanentes, é uma medida que vem normalizar e incrementar o panorama de precariedade entre os bolseiros de investigação científica. O recurso a mão-de-obra não remunerada em museus é também prática corrente, contabilizando-se 323 casos num universo de cerca de 5000 pessoas ao serviço, segundo dados do INE referentes ao ano de 2022. 

Ao estrangulamento financeiro dos museus, a proposta do anterior Governo (que o actual não pretende reverter) contrapõe com a intervenção de privados e a acção do mecenato. Desde logo, o estatuto da MMP obedece a uma lógica empresarial, estando pois sujeita ao espartilho da eficiência económica dos custos e a práticas mercantilistas tendo em vista a maximização do lucro. É igualmente preocupante a intervenção do mecenato e o papel deste na definição das políticas públicas dos museus, particularmente problemático se tivermos em conta que os museus são, também, instrumentos de combate ideológico. A intervenção dos interesses privados na gestão dos museus poderá corresponder à conversão destes em espaços meramente lúdicos e recreativos, cujas narrativas e estratégias de actuação ficam à mercê, não de um serviço público, mas da agenda do poder económico. Pode estar comprometida a essência do museu naquilo que o faz ser museu.

A nova definição de museu, determinada pelo ICOM (Conselho Internacional de Museus) em 2022, alarga a noção de património. Reitera que os museus são instituições sem fins lucrativos e de carácter permanente, colocadas ao serviço da sociedade, e dá maior ênfase à função de “investigação”. Acrescenta ainda acessibilidade, inclusividade e diversidade no desiderato destas estruturas e acolhe as dimensões éticas, profissionais e comunitárias participativas na sua concepção. Mais do que meros espaços físicos, os museus são agentes activos que veiculam discursos e intermedeiam diálogos. São simultaneamente construídos e construtores da realidade em que vivemos, podendo concatenar no presente visões do mundo que se querem futuro. É imperativo que se criem as condições necessárias para que os museus cumpram o seu desígnio enquanto lugares de memória e de partilha de conhecimento, designadamente por via do urgente reforço financeiro.

Artigos Relacionados