Entrevista

Restauração

Patrícia Estevão: “Uma cerveja vale mais do que uma hora do meu trabalho”

Em 2023, as receitas do turismo superaram os 6 mil milhões de euros. A região de Lisboa foi uma das que registou um aumento mais expressivo. Dentro do setor, a restauração registou também uma subida da faturação. Contudo, a maior parte destes números não chega aos bolsos dos trabalhadores. Patrícia Estevão, de Lisboa, é um desses casos. Com 46 anos, depois de uma licenciatura em cerâmica e uma década de emigração em Londres, trabalha num restaurante da capital como empregada de mesa. No fim de maio, a Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal organizou uma greve para exigir contratação coletiva e melhores condições de trabalho num setor em que os patrões se queixam da falta de mão de obra ao mesmo tempo que praticam baixos salários.

Estamos no verão. Há alguma diferença no ritmo de trabalho nestes meses em comparação com o resto do ano?

A realidade atual é que já não se sabe prever muito bem os ritmos de trabalho. Trabalho em Lisboa, numa zona super turistificada, há mais de um ano, e o fluxo é bastante flutuante. Ou seja, não é só no verão que há casa cheia e o que tenho notado é que os anos anteriores quase que já deixam de ser referência. Por norma, o início do ano é sempre um pouco mais fraco. Mas acho que posso dizer que em Lisboa é verão quase o ano inteiro. Trabalho 35 horas semanais, são oito horas intensas por turno. Não há trabalho em restauração sem umas quantas horas extras que por norma não são pagas. No pós horário de fecho, ainda há muito trabalho a ser feito, passando de um serviço de mesa para um serviço de limpeza do espaço. Refiro-me a varrer o chão, passar a esfregona e até a limpeza da casa de banho e a limpeza de bar. Só aí o patronato já está a lucrar. São horas extras que não são pagas ao trabalhador e é a poupança de um salário para evitar a contratação de um trabalhador para a limpeza.

Tem uma situação laboral estável?

Faz agora um ano que, após uma grande luta por direitos e condições de trabalho com a empresa para quem trabalho, nomeadamente salários em atraso, passei de muito precária a uma precária com efetividade na empresa. Uma grande luta, mas que me deu maior estabilidade. Mas nunca se sabe… 

Há outros trabalhadores com os mesmos problemas?

As queixas são muitas. Das más condições de trabalho à discriminação salarial. Passamos pela rotatividade constante de escalas de trabalho e de trabalhadores. Dos horários desregulados impossibilitando ter uma vida conciliável com amigos ou familiares. Turnos que vão para além do funcionamento dos transportes públicos, e a falta de subsídios noturnos prejudicando o trabalhador, havendo um gasto extra em deslocações para casa no pós laboral. É quase pagar para trabalhar. Trabalho com colegas imigrantes europeus com salários mais elevados do que um cidadão português ou um imigrante do sul da Ásia e América do Sul. Aos denominados expats, são-lhes oferecidos cargos de chefia. Em causa está a não progressão da carreira de qualquer trabalhador que já se encontra nos cargos da empresa. É desmotivante. Sobretudo, no meu caso específico, e devido ao meu ativismo dentro da empresa, sou alvo constante de assédio moral e psicológico: discriminação perante outros colegas em situações de, por exemplo, requisição de férias.

Sente que há uma disparidade entre o que vos é pago e os lucros do restaurante?

A empresa para quem trabalho pertence a um grupo francês. A unidade hoteleira sediada aqui em Lisboa é gerida por franceses, os mesmos acham que Portugal é o Eldorado europeu e que lhes dá liberdade para violar direitos laborais e explorar… só que não. Falamos de um negócio, de um restaurante, que não é propriamente acessível aos bolsos de todo o comum mortal, ou o comum mortal português… tendo em conta o salário mínimo nacional. Para ter uma nocão, uma cerveja custa 6 euros e meio, vale mais do que uma hora do meu trabalho.

Qual é o tipo de cliente mais comum?

Maioritariamente turistas. Muitos estrangeiros a residir em Portugal, com poder monetário superior ao nosso. Portugueses poucos…mas dá-me bastante alegria quando os tenho na casa. Questiono-me se será por não identificação com o espaço ou pelos preços inflacionados… 

Sente que há uma relação entre esse tipo de negócio mais virado para o turismo e a especulação?

É uma consequência, sim, quando há uma cidade que foi praticamente vendida para turismo e vistos gold. Despejos massificados em prol de uma Lisboa adaptada ao padrão de qualquer outra capital europeia… boulangeries, croissanteries e gelateries da vida. Claramente não é a Lisboa onde crescemos. Criou-se um distanciamento, uma espécie de segregação da classe trabalhadora. Os que produzem riqueza foram empurrados para fora da cidade. O acesso à mesma passou a ser um luxo e não um direito. 

De que forma é que a crise de habitação afecta a sua vida?

Vivo em Lisboa… ainda! Portanto, a crise da habitação afeta-me a nível orçamental. O meu ordenado não acompanha a inflação. Por exemplo, no mês passado aumentaram-me a renda, mas o ordenado mantém-se. Vou a todas as manifestações pelo direito à habitação. Marcho sempre com o movimento Vida Justa, um projeto que tenho vindo a acompanhar. Devíamos sair mais para a rua, também no que diz respeito a este direito. Há que contestar a vergonhosa situação em que vivemos.

Muitos empresários da hotelaria e restauração afirmaram que não conseguem arranjar mão de obra suficiente para o sector.

Automaticamente, com esta questão, veio-me à cabeça uma música do Sam The Kid, Poetas de Karaoke. Há mão de obra, claro que há. Não há é oferta de condições de trabalho, ordenados condignos e contratos de trabalho por parte das empresas. 

Sente que apostar nos baixos salários para manter lucros elevados é a razão para a contratação de cada vez mais imigrantes para a restauração?

Quem é que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Uma coisa leva a outra. Interessa ao grande capital baixos salários para que os lucros sejam mais elevados e os imigrantes na sua maioria não tem acesso à informação laboral. Não sabem os seus direitos e sujeitam-se a qualquer condição que lhes seja oferecida. A falta de informação básica sobre a lei do trabalho levou-me a desenvolver uma fanzine que se chama Eles Comem Tudo, especificamente para o setor da restauração, com o intuito de alertar e informar os colegas menos atentos aos seus direitos. O primeiro número já anda por aí com distribuição gratuita e espero vir a ajudar desta forma a combater a precariedade. 

E quando é que decidiu dar o passo de se sindicalizar? 

A sindicalização aconteceu como consequência de anos e anos de muita precariedade. Foram anos sem descontos, anos de exploração. O meu pai foi sempre sindicalizado. Com isto quero dizer que a palavra sindicato ou a expressão “o meu sindicato” esteve bastante presente na minha educação. E o meu trabalho atual também não me deu outra alternativa… camaradas, lutemos unidos porque é nossa a vitória final [risos]. Eu acredito que está na altura de dar mais força e voz aos sindicatos, quando temos um governo que pretende fazer retroceder a lei laboral. Querem retirar-nos direitos, a nós, classe trabalhadora, depois de anos e anos de luta em que foram conquistados muitos desses direitos, incluindo os direitos conquistados com a revolução de Abril. A existência de sindicatos é necessária. É necessário criar princípios proletários que favoreçam o trabalhador.

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