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Palestina

Sabreen resistiu, mas morreu

Morreu Sabreen al-Ruh, a bebé prematura retirada do ventre da mãe moribunda após um bombardeamento israelita contra um bairro em Rafah, no sul da Faixa de Gaza.

Sabreen tinha apenas 30 semanas quando os médicos a resgataram do útero da progenitora, que agonizava com ferimentos graves na cabeça e no estômago. Sabreen, nome dado pelo tio que agora a sepultou junto ao pai e irmã, assassinados pelas bombas de Israel em sua própria casa, foi apresentada ao mundo como uma prova de que, todavia, persiste uma nesga de possibilidade de sobrevivência no terreiro em cinzas e chamas em que os sionista transformaram a Faixa de Gaza. Mas não existe neste momento e isso é um crime que urge travar e impedir que fique impune.

Sabreen resistiu ao ataque desmedido. Os médicos tentaram desesperadamente que adquirisse condições para medrar, o que, dada a evolução da ciência e da técnica clínicas, não é um milagre para um prematuro de 30 semanas no século XXI. Mas o que Israel está a fazer na Faixa de Gaza é precisamente impossibilitar a vida. E mesmo que Sabreen tivesse sobrevivido por mais umas semanas ou meses, que vida pode singrar num território exangue, onde não há abrigo, água potável e outras infraestruturas básicas, alimentos, assistência médica e medicamentosa que não seja a que se exerce num contexto muito para lá do limite da razoabilidade, onde cada minuto pode ser o último antes de ser varado por balas ou despedaçado por um míssil?

Em Rafah, onde Sabreen nasceu, estão concentrados cerca de 1,5 milhões de palestinianos de um total de 2,4 milhões de habitantes da Faixa de Gaza. Um milhão dos que se encontram amontoados na cidade e arredores, junto à fronteira com o Egipto, são deslocados de guerra oriundos do Norte e Centro do território, completamente arrasado. Rafah encontra-se sob ameaça de uma invasão terrestre israelita, destinada a terraplanar o pouco que subsiste. Será um dos últimos episódios da condenação que Israel ditou para os palestinianos: liquidar os que resistem, subjugar os que restarem num território anexado e reconstruído para colonos. A notícia de que estarão a ser montadas, ao lado de um cemitério, em Khan Yunis, as primeiras tendas de campanha de uma encomenda total israelita de 40 mil, é uma metáfora tétrica do prolongamento da tragédia dos últimos seis meses. Aos palestinianos que não ficarem sob as lonas brancas na sequência da ofensiva sobre Rafah, resta-lhes o sepulcro das lápides alvas ou terra clara semidesértica no espaço fúnebre , ali, paredes meias.

A Faixa de Gaza é hoje um gigantesco cemitério que ninguém a quem resta um pingo de humanidade pode ignorar: consumado para os que já morreram e para os que sucumbem diariamente à brutalidade sionista; em projecto para os que ainda ousam respirar. Calcula-se que desde o início de Outubro, terão sido assassinados mais de 42 mil palestinianos pelo exército de Telavive. A esmagadora maioria (90%) são civis. Mais de 60% são mulheres e crianças – cerca de 10 mil e quase 16 mil, respectivamente. Mais de 76 mil habitantes da Faixa de Gaza são dados como desaparecidos, provavelmente soterrados nos escombros dos prédios destruídos ou atirados para valas comuns, como as descobertas por estes dias noa hospitais Al-Shifa e Nasser, bombardeados e invadiso pelas tropas de Israel.

Fazer triunfar a vida sobre 

a barbárie

A secretária-geral da Amnistia Internacional, insuspeita de simpatias para com o Hamas, não poupa nas palavras e considera que a ofensiva israelita na Faixa de Gaza «rasgou em pedaços» as lições do Holocausto. Dando conta do conteúdo do relatório anual da organização, Agnès Callamard acusa Israel de «uma campanha de bombardeamentos deliberados e indiscriminados contra civis e infraestruturas civis, de negação de assistência humanitária e de fome planeada».

Os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, nas Convenções de Genebra, na Convenção sobre o Genocídio e no direito internacional dos direitos humanos «foram desonrados», afirmou ainda Agnès Callamard, que também não isentou EUA e UE, atribuindo-lhes responsabilidades pelo que está a acontecer, designadamente ao continuarem a «enviar armas para Israel», ao recusarem «denunciar as violações implacáveis» e rejeitarem «os apelos para um cessar-fogo».

Os cerca de 1,1 milhões de palestinianos em «situação de fome catastrófica», o «número mais elevado alguma vez registado», segundo a ONU; os cerca de 250 trabalhadores humanitários mortos desde Outubro, entre os quais 180 funcionários da agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA, e as mais de 150 instalações desta destruídas na Faixa de Gaza; os voluntários da ONG World Central Kitchen liquidados por um míssil israelita quando tentavam entregar ajuda humanitária ao povo de Gaza e os alimentos e água que chegam a conta-gotas e em quantidade muitíssimo insuficiente; a suspensão da contribuição norte-americana à UNRWA até Março de 2025 e a aprovação recente pela Câmara dos Representantes de um novo pacote de ajuda militar a Israel no valor de 12,2 mil milhões de euros; o veto dos EUA à integração da Palestina como Estado-membro de pleno direito na ONU, atestam que a campanha israelita na Faixa de Gaza, apoiada por uma potência mundial decadente e anquilosada, é um genocídio.

Por estes dias, nos EUA e na Europa, apesar das detenções e do desmantelamento de acampamentos de protesto por parte das autoridades policiais, milhares de jovens em dezenas de universidades exigem que Israel seja sujeito a um boicote internacional que obrigue a um cessar-fogo. Nos últimos meses, milhões de pessoas em todo o mundo têm saído à rua pelo fim da guerra insana, contra a impunidade e pelos direitos do povo palestiniano a viver em paz na sua terra. Este movimento não foi a tempo de garantir que Sabreen tivesse hipótese de viver, depois de ter escapado à morte certa no útero estéril de vida da sua mãe. A vida de Sabreen não teve condições para vingar, mas a inviabilização propositada da sobrevivência dos palestinianos não pode triunfar. Só os povos podem impedir a barbárie que aniquila qualquer esperança e mesmo a mais instintiva resistência.

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