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O que a escuridão revelou sobre o nosso sistema energético

Ao final da manhã de 28 de abril, a Península Ibérica mergulhou numa escuridão súbita. O colapso total do sistema elétrico deixou milhões de pessoas sem luz, transportes, comunicações ou acesso a serviços básicos durante horas. Mais de dois meses depois, não existe uma explicação pública clara, nenhuma entidade assume responsabilidades e nenhuma indemnização foi paga às famílias e empresas afetadas. O que começou por ser tratado como uma falha técnica isolada revelou-se, afinal, um sintoma de uma crise mais profunda: a da transição energética conduzida por interesses privados, despolitizada e desprovida de controlo democrático.

As investigações oficiais permitiram identificar a origem do colapso: a mega central solar da Iberdrola, em Badajoz, terá iniciado o ciclo de instabilidade ao produzir oscilações anómalas. Não obstante, o incidente não se cingiu a este centro electroprodutor renovável. Diversas centrais a gás e nucleares, que deveriam garantir a estabilidade do sistema em situações críticas, falharam nas suas funções. A Rede Eléctrica de Espanha (REE) acusa os operadores privados de incumprirem protocolos de segurança; estes devolvem a acusação, responsabilizando o regulador e o governo por má gestão. A guerra de acusações mútuas prossegue, mas um dado é evidente: nenhuma das entidades envolvidas – pública ou privada – assume responsabilidade pelas falhas, nem pelos prejuízos causados a milhões de pessoas. A complexidade técnica serve, uma vez mais, de escudo para a desresponsabilização política.

A opacidade institucional agrava a incerteza. A identidade das centrais envolvidas foi omitida nos relatórios oficiais, “a pedido das empresas”. A Iberdrola, a Endesa, a Naturgy e a EDP – que controlam mais de 700 mil quilómetros de rede e a esmagadora maioria da produção termoelétrica em Espanha – recusaram partilhar a totalidade dos dados exigidos pelas autoridades. A sua resistência em colaborar, apesar das obrigações legais, expõe a assimetria de poder entre as grandes empresas privadas e os governos nacionais, num setor estratégico como o da energia.

Pese embora os impactos igualmente nocivos do apagão no território nacional, o governo português remeteu-se ao silêncio. Não há qualquer prestação de contas, balanço oficial dos prejuízos ou exigência de responsabilidades a Madrid. O Estado, completamente diminuído nas suas capacidades de planeamento e intervenção, não cumpre sequer o mínimo: defender o interesse público. A população paga duplamente – na fatura da energia e nas falhas do sistema.

Este apagão, embora iniciado numa central solar, não deve ser instrumentalizado para atacar as energias renováveis, como procura fazer a extrema-direita. O problema não reside na descarbonização em si, mas na forma como está a ser conduzida: através de megaprojetos centralizados, financiados por fundos públicos, mas operados por grandes empresas privadas, sem transparência nem mecanismos de escrutínio democrático. O colapso da rede revelou um modelo estruturalmente vulnerável, centrado nos lucros de curto-prazo e incapaz de responder a eventos extremos cada vez mais frequentes num contexto de crise climática.

O que o apagão demonstrou, com clareza perturbadora, foi a falência de uma transição energética sem soberania. Um sistema que depende da boa vontade de gigantes empresariais e onde os governos se limitam a repetir versões técnicas, sem liderança política. Um sistema em que os lucros são privatizados, os prejuízos socializados e a energia continua ausente do debate democrático.

Perante este cenário, é urgente recentrar a energia no debate político. A energia não é uma mercadoria, é um bem comum e um direito universal. O que caiu no dia 28 de abril não foi apenas a rede elétrica, foi a ilusão de que se pode fazer uma transição energética justa e democrática sem planeamento e controlo público.

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