A 26 de setembro de 2021, os lisboetas foram chamados a votar nas eleições autárquicas e o PS, em coligação com o Livre, perdeu cerca de 7% dos votos, apenas alcançando os 30,8%. Na verdade, das forças políticas que conseguiram eleger vereadores, a CDU foi a única que subiu. Surpreendentemente, mesmo coligados, o PSD e o CDS-PP tiveram um pior resultado que a soma dos votos, quatro anos antes, quando haviam concorrido em separado. Apesar da ligeira quebra eleitoral, Carlos Moedas tornou-se presidente da câmara municipal de Lisboa.
Com Fernando Medina, o processo de financeirização e turistificação da cidade acelerou e o ex-autarca do PS recebeu duras críticas. Hoje, Carlos Moedas é acusado de ter aprofundado ainda mais esse processo.
Moedas escolheu sempre a mercantilização
O arquiteto e urbanista Tiago Mota Saraiva, que dá aulas na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e vive na cidade, aponta a habitação, a participação e a acessibilidade pedonal como algumas das áreas mais críticas. Explicando que o problema da habitação não é exclusivamente uma responsabilidade autárquica, “a câmara podia fazer muito mais do que está a fazer”. Para Tiago Mota Saraiva, “cada vez mais, os imóveis na cidade de Lisboa não são casas, são ativos imobiliários”. Como consequência, a maioria das pessoas não consegue manter-se na cidade. “Lisboa tem 47 mil casas vazias, em zonas centrais da cidade, onde o município não opera. E nada fez sobre a sua disponibilização, nem avançou grande coisa”, sublinha. Os efeitos sociais são “devastadores” com casais separados forçados e com filhos a viver juntos ou com jovens que não se conseguem emancipar de casa dos pais. Para o futuro da cidade, o arquiteto considera que esta situação é “dramática”, uma vez que Lisboa fica cada vez mais desertificada de jovens que aqui se formam.
Para isso, Carlos Moedas teve “muita influência” com a manutenção dos “estímulos e cedências” para transformar a habitação em alojamento local, “combatendo sempre todas as regras onde se pretendia regular de alguma forma o mercado do alojamento local”. Carlos Moedas “escolheu sempre o lado da mercantilização da habitação”.
Por outra parte, Tiago Mota Saraiva considera que este mandato ficou caracterizado pela falta de cultura de participação e considera o Conselho de Cidadãos um “falhanço total” e explica que “a participação não é só por esta ou outra pessoa poder mandar um e-mail à câmara a dizer que acha que é mais isto ou mais aquilo, a participação faz-se a partir da discussão coletiva e faz-se a partir da constituição de momentos de participação”. O momento que considera ilustrar bem o “falhanço” do Conselho de Cidadãos foi quando um munícipe propôs a criação do Provedor do Cidadão. “Carlos Moedas levanta-se e diz: ‘Não, não, o Provedor do Cidadão sou eu’. Como se o facto de ter sido eleito presidente da câmara lhe desse um estatuto de juiz magnânimo. Talvez o Papa lhe tenha dito isso”, ironiza.
Quanto à acessibilidade pedonal, no âmbito das questões de mobilidade, entende que piorou significativamente, recordando que Carlos Moedas subscreveu a ideia de que a Polícia Municipal devia multar menos e não incomodar tanto os cidadãos. “A estrutura de investimento público naquilo que é a acessibilidade pedonal está completamente desfasada daquilo que está a acontecer nas outras capitais europeias, completamente desfasada. Lisboa está a andar para trás nesse sentido”.
“Êxodo” de trabalhadores expõe condições pouco atrativas
Nuno Almeida é coordenador do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa (STML) e considera que continua a haver carências a nível de pessoal e da formação dos trabalhadores da autarquia. Ao longo dos últimos quatro anos, foram várias as lutas por melhores condições de trabalho e entende que quando há avanços em matéria laboral é graças à intervenção sindical. “A verdade é que, ou por constrangimentos financeiros ou até por inércia da própria Câmara, as coisas andam muito mais devagar do que aquilo que a gente gostaria. Onde as coisas às vezes avançam é porque há a luta dos trabalhadores que obriga à tomada de decisões políticas no sentido de melhorar essas condições”, explica, exemplificando com a greve de dezembro de 2024.
A transferência de competências para as juntas de freguesia em 2014 veio dificultar o serviço público na cidade e Nuno Almeida dá o exemplo da higiene urbana, uma das falhas mais apontadas à gestão de Carlos Moedas, “onde há muita confusão entre quem faz o quê e o que é que cabe a cada um”. Isto, explica, num quadro em que “aliada ao desinvestimento nos serviços públicos, aumenta a procura na iniciativa privada para tentar colmatar as deficiências e as carências que existem na cidade”.
Naturalmente, a batalha por melhores condições para os trabalhadores é uma prioridade do STML e, nesse sentido, fizeram algumas propostas que já foram apresentadas à autarquia como a equiparação da recompensa do trabalho em dia de feriado ao trabalho em dia de descanso obrigatório. Também a atribuição do passe metropolitano a todos os trabalhadores, que Nuno Almeida entende ser uma medida de alívio da despesa em transportes e, simultaneamente, retiraria mais viaturas ao trânsito na cidade. Outra realidade preocupante é o “êxodo” de trabalhadores que abandonam a autarquia à procura de melhores condições no privado ou no estrangeiro. “As vagas não preenchidas em concursos são a prova de que não é atrativo trabalhar no município”, descreve o sindicalista. “Isto põe em causa os serviços públicos na cidade”. Em relação à aritmética política no executivo aponta também o dedo ao PS que tem viabilizado muitas das decisões do PSD/CDS-PP, apesar de Carlos Moedas não ter maioria.
Lisboa desigual
Para António Brito Guterres, assistente social com especialização em estudos urbanos e com um conhecimento profundo sobre os bairros municipais de Lisboa, a realidade habitacional na cidade piorou muito. Se havia 800 casas ocupadas quando Carlos Moedas tomou posse, agora serão mais, explica. Isto deve-se, em parte, ao facto de o processo de realojamento ter demorado tanto que já foi em “sobrelotação” com duas ou três famílias no mesmo apartamento.
De acordo com Brito Guterres, as pessoas não conseguiram progredir, apesar da prosperidade propalada de um “Portugal europeu de pleno emprego e qualificações”. Lisboa é, hoje, a cidade mais rica em termos de Produto Interno Bruto e, simultaneamente, o concelho mais desigual do país, de acordo com o coeficiente de Gini. Outro dado sublinhado pelo também investigador no Dinâmia-Cet ISCTE – IUL é o número de licenciados em Lisboa, o mais alto do país, mas com uma distribuição desproporcional nas diferentes áreas da cidade. “Há zonas onde há muitos licenciados e zonas onde são praticamente inexistentes, que é o caso dos bairros sociais. Portanto, os bairros sociais, enquanto espaço que teve política pública para combater exatamente os desígnios de cada um na sua nascença, estão ao nível da sua construção e na sua lógica de habitação, mas também na lógica do seu habitat, completamente entregues a reproduzir a pobreza das pessoas”, afirma. “Por exemplo, no sítio onde trabalho, já depois das obras financiadas pelo PRR, só funciona um elevador em sete. Temos o caso de uma senhora de idade que morreu em Marvila quando teve de subir até ao oitavo andar a pé”. O caso aconteceu em janeiro deste ano quando Lurdes Valente, de 83 anos, não resistiu ao esforço e morreu depois de uma paragem cardiorrespiratória. Na altura, ao canal Now, Alexandre Teixeira, membro da comissão de moradores em Marvila, afirmou que o desfecho era já expectável, revelando que havia quem vivesse em “prisão domiciliária”, idosos ou moradores com mobilidade reduzida sem capacidade de sair das suas casas.
Brito Guterres denuncia ainda o facto de a autarquia se dedicar a embelezar as fachadas dos edifícios municipais sem se preocupar com o seu interior. “No bairro do Boavista nem caixas de correio tinham. Portanto, à distância até parece bom mas por dentro, nas zonas comuns, não há nada. Há caixas de derivação à mostra com crianças ali perto”. Outro dos pontos em que toca é o da linha orientadora da Gebalis, a empresa municipal de gestão da habitação pública, que não resolve os problemas do desenvolvimento local e da pobreza.
Sobre a polémica intenção de Carlos Moedas de dar mais poder à polícia municipal, Brito Guterres recorda que a insegurança baixou em Lisboa, segundo dados oficiais, e que é bizarro que o presidente da autarquia, que tanto aposta no turismo, queira projetar uma imagem de uma cidade violenta para o exterior. “A principal insegurança da cidade de Lisboa é a sua desigualdade”, garante.