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Palestina

A pergunta que ninguém faz: “E você, condena o genocídio em Gaza?”

A cada dia que passa a barbárie entra-nos em directo nas televisões pela casa adentro. Em Portugal, apesar de dezenas de milhares de crianças mortas, os responsáveis do governo limitam-se a declarações de circunstância.

Ilustração: Luís Alves

À hora a que escrevo estas linhas, domingo, dia 1 de Junho, as notícias dão conta de que em dois lugares da faixa de Gaza, em Rafah e em Nuseirat, o exército israelita disparou contra a multidão que se aglomerava nos centros de distribuição alimentar instalados e geridos pelos EUA. Fala-se numa trintena de mortos e de cerca de duas centenas de feridos. As imagens mostram pessoas correndo por um recinto vedado, disputando caixas de comida que ali se encontram amontoadas, sob o olhar galhofeiro dos mercenários norte-americanos.

É assim o quotidiano em Gaza, dia após dia, minuto a minuto. No dia 30 de Maio último, Jens Laerke, o porta-voz do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários dizia que “Gaza é o lugar na Terra com mais fome” e explicava: “é a única área delimitada – um país ou um território definido dentro de um país – onde toda a população está em risco de fome. Cem por cento da população está em risco de fome”. Enquanto isso, Israel destrói os centros de distribuição de ajuda alimentar das organizações humanitárias, incluindo da UNRWA, a agência das ONU para os refugiados palestinos e bombardeia as cozinhas comunitárias. Gaza está sob um bloqueio total vai para três meses.

Em Maio de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça considerava existirem indícios fundados sobre a prática por Israel do crime de genocídio e, de forma reiterada, determinou a aplicação de medidas provisórias que Israel se recusa a cumprir. Depois disso, a Amnistia Internacional reuniu bastas evidências que tornou públicas num relatório divulgado em Dezembro de 2024 e onde defende existirem bases suficientes para afirmar que Israel “cometeu e está a cometer genocídio”.

O que se está a viver em Gaza não é uma catástrofe humanitária determinada por um acidente natural, um sismo, uma inundação, ou um incêndio. Em Gaza – e já agora também na Margem Ocidental do rio Jordão, incluindo em Jerusalém Oriental – está a ocorrer um crime de proporções apocalípticas cujas ondas de choque reverberarão por muito tempo adiante. Um crime que tem responsáveis, mandantes e executantes, financiadores, defensores, que serão um dia julgados, pela história senão pelos tribunais. Que aconteça, ininterruptamente, desde há mais de 600 dias, diz tudo sobre o estado do mundo em que vivemos. Que em Portugal, as instituições, desde logo o governo, tenham atravessado estes vinte meses sem um sobressalto, uma iniciativa diplomática, um gesto, para além de declarações de circunstância, vazias de consequência, diz muito sobre o país que somos hoje, cinquenta e um anos depois do 25 de Abril. Cerca de 60 mil mortos depois – ou talvez perto de cem mil segundo Francesco Checchi, um epidemiologista italiano da London School of Hygiene and Tropical Medicine, co-autor de artigos publicados na revista científica Lancet sobre o saldo de vítimas em Gaza – nenhum primeiro-ministro ou membro do governo, nenhum deputado, nenhum dirigente político, foi até hoje confrontado com a pergunta singela: “condena o genocídio em Gaza”?

Quando se trata das vidas palestinas, dir-se-ia que nada nunca é suficientemente grave que justifique a interpelação. E, pelo contrário, tudo é permitido. Não por acaso, comentadores com lugar cativo nas televisões, sempre prontos a justificar a brutalidade de Israel, escolheram Gaza e a Palestina para fazer chalaças nas redes sociais sobre os resultados das eleições legislativas. Helena Ferro Gouveia ironizou com o “círculo eleitoral de Gaza”; Nuno Rogeiro brincou com o símbolo de um partido e escreveu “sozinho em Gaza”. Estas e outras alarvidades são parte do mesmo caldo de cultura de onde medra a extrema-direita, o racismo e o militarismo. Haverá que colocá-los na equação na hora de explicar o momento político que vivemos. Por isso, também, Gaza está nas nossas vidas, porque por ali passa também a defesa da liberdade e do regime democrático.

Há uma semanas, João Taborda da Gama, o recém-nomeado pelo governo Coordenador Nacional da Estratégia Europeia para Combater o Anti-semitismo e Promover a Vida Judaica veio censurar um cartoon de Cristina Sampaio publicado no jornal Público, classificando-o como “exemplo de anti-semitismo” por estabelecer uma equivalência entre a campanha genocida do governo de Israel e o nazismo e, assim, “trivializar o holocausto”. Nessa imagem, recorde-se, Netanyahu aparece abraçado a Hitler, sem que nenhum símbolo que possa ser associado à cultura judaica seja exibido. É caso para perguntar onde estava Taborda de Gama de todas as vezes – e são tantas! – em que forças da resistência palestina foram associadas a nazis ou quando os acontecimentos do 7 de Outubro foram tratados em equivalência com o extermínio de judeus europeus nos campos de concentração da Alemanha nazi. Pé ante pé, como em vários países da União Europeia – sempre ciosa dos seus “valores” – e nos EUA, também em Portugal a tentativa de criminalização da solidariedade com a causa palestina vai fazendo o seu caminho. Preparemo-nos.

A terminar estas linhas, chega a notícia da morte de Hamdi Al-Najjar, médico do hospital Nasser, em Khan Younis, marido de Alaa Al-Najjar, médica também ela no mesmo hospital, em consequência dos ferimentos sofridos no bombardeamento que atingiu a sua casa e no qual pereceram nove dos seus dez filhos. Hoje, é dia 1 de Junho e assinala-se o Dia Mundial da Criança.

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