Entrevista

Mulheres

Sofia Lisboa: “Não estamos a lutar para beneficiar da exploração”

A luta das mulheres tem em março um significado histórico numa trajetória que, apesar dos avanços, está longe de terminar. Hoje, as desigualdades salariais entre homens e mulheres acentuam-se e a violência doméstica continua a ser o crime mais cometido em Portugal. Sofia Lisboa, presidente da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), explica que a precariedade e a discriminação marcam a vida das mulheres que trabalham no setor.

Sobre a problemática das bolseiras e as dificuldades que têm na publicação dos seus trabalhos, na pandemia isso foi ainda mais evidente, com uma sobrecarga que limitou a produção científica das mulheres.

É uma questão que nessa altura se agravou. Há um estudo que levou à conclusão de que naquele período, o facto de ficarem confinados deu mais produtividade aos homens, e às mulheres menos. É curioso como fomos todos confrontados com a necessidade de ficarmos em casa, de pararmos, de delimitarmos, digamos assim, as nossas atividades, e de como isso beneficiou a investigação dos homens e prejudicou a das mulheres.

Mas a principal questão tem a ver com a forma como as mulheres desenvolvem esta atividade, e o problema é justamente não haver carreira. Nós hoje temos muitas mulheres a fazer investigação, um dado que se alterou significativamente nos últimos 50 anos. Mas as mulheres continuam a acumular com outras tarefas e, portanto, para muitas o trabalho não acaba às cinco da tarde e estão limitadas com a assistência à família, durante o dia. Isso condiciona, necessariamente.

Quando discutimos esta questão, não pensamos que defender os direitos das mulheres seja elas poderem passar a trabalhar sem horários, como muitos homens da investigação trabalham. E muitas mulheres trabalham na investigação sem horários. Isto está relacionado com a precariedade. Há pessoas na investigação que têm períodos sem rendimentos e sem qualquer tipo de vínculo e continuam a fazer investigação, à espera do resultado do próximo concurso. Depois, há bolseiros com um vínculo que nem sequer concede a condição de trabalhador.

“Muitas mulheres neste setor adiem a decisão de ter filhos, porque esperam sempre um outro momento de estabilidade que permita essa escolha.”

Esta precariedade leva a que se sinta esta necessidade de estar permanentemente a trabalhar. As pessoas têm um limite – o fim da bolsa – para entregar os seus trabalhos. Esta ideia de que têm de estar sempre a trabalhar penaliza as mulheres que não podem, porque têm de prestar outro tipo de cuidados à família. Isto faz com que muitas mulheres neste setor adiem a decisão de ter filhos, porque esperam sempre um outro momento de estabilidade que permita essa escolha.

Portanto, neste quadro social onde as mulheres continuam a desempenhar muito mais tarefas domésticas e relacionadas com a parentalidade do que os homens, esta conciliação da investigação num contexto precário é particularmente complexo.

É preciso uma grande rede de apoio financeiro e logístico. Diria que é uma coisa transversal a quem escolhe esta via profissional. Para uma pessoa que tem filhos, como é que se pode optar por um percurso que vai obrigar a estar períodos sem rendimentos? Isto não é só mais tarde [na carreira], quando estamos à espera de financiamento, é desde o início, quando nos candidatamos à bolsa de doutoramento. Se temos o financiamento da FCT, sabemos que temos a bolsa, mas desde o momento em que assinamos o contrato e o momento em que a recebemos, às vezes passam cinco meses. Acabando o doutoramento, entrega-se a tese, fica-se sem bolsa e às vezes passam quatro ou cinco meses até à data da defesa. Há pessoas que não tendo rede de apoio fazem as suas opções e têm que condicionar os seus horários de trabalho para estar com as crianças, nos fins de tarde, fins de semanas, períodos em que têm de estar fora de Portugal para as missões, para os trabalhos de campo, para as conferências. Há uma série de coisas que só é possível fazer se houver avós, tias, amigas, pessoas que partilhem o cuidado com as crianças.

“Para uma pessoa que tem filhos, como é que se pode optar por um percurso que vai obrigar a estar períodos sem rendimentos?”

As mulheres são simultaneamente cada vez mais a franja mais qualificada da sociedade, mas simultaneamente a mais mal paga. O Estado e as empresas continuam de costas voltadas para as mulheres?

É a eterna questão de se conseguir, por determinadas circunstâncias das pessoas e dos trabalhadores, explorar mais uns do que outros. O Estado e as empresas estão de costas voltadas para as mulheres mas também estão de costas voltadas para os homens trabalhadores. Os salários baixos em Portugal são generalizados. Historicamente, as coisas foram evoluindo e permitiu-se a possibilidade de pagar menos às mulheres, com a necessidade do patrão de acumular mais e distribuir menos. Também se pagava menos às crianças quando trabalhavam. As mulheres estão cada vez mais qualificadas e mesmo assim continuam a receber menos do que os homens. Isso mostra que há uma alteração histórica, que tem a ver com as condições, hoje, do acesso à formação. E, portanto, aqui, há uma contradição.

“As mulheres estão cada vez mais qualificadas e mesmo assim continuam a receber menos do que os homens.”

No campo do ensino superior, há muito mais mulheres com formação, há milhares de mulheres docentes, mas depois há muito menos mulheres nas direções das próprias instituições. Não é que achemos que as mulheres devam ser todas diretoras ou que vão ser melhores diretoras que os diretores. Mas há claramente um desequilíbrio. Falávamos das mulheres que ficaram mais tempo em casa com as crianças, das mulheres que não progrediram na carreira da mesma forma, das mulheres que não têm acesso a esses mecanismos de poder e isso diz muito sobre condicionamentos à democracia das instituições de ensino superior.

Há um feminismo que consegue pôr todas as questões em cima da mesa menos a de classe. De que forma é isto prejudicial à luta das mulheres?

O 25 de Abril transformou a vida de todas as mulheres em Portugal, seja as mulheres da aristocracia, seja as mulheres trabalhadoras. Quando se diz que mudou tudo para todas, estamos a dizer que as mulheres, no seu todo, e de alguma forma, beneficiaram com a democracia em Portugal. Isso não é menos importante, mas a verdade é que existe, historicamente, em diferentes grupos, a ideia de que se poder aceder ao poder, aceder ao grupo dos privilegiados, deve ser para todos os grupos oprimidos, ou seja, que uma mulher que é da burguesia deve poder mandar como os homens da burguesia. É uma luta legítima das mulheres da burguesia. Mas não é o que resolve os problemas de desigualdade nem os problemas de exploração para quem vive do seu trabalho, que é a maioria das pessoas. A luta da maior parte das mulheres, que são as mulheres trabalhadoras, não é essa luta. Não estamos a lutar para podermos ser nós a beneficiar dessa exploração.

Há um avanço do neoconservadorismo sobre a condição das mulheres, das limitações aos direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, à crença que as mulheres não têm filhos porque não querem ser responsabilizadas pela baixa natalidade ou desestruturação da família tradicional. Como observa essas narrativas de culpabilização das mulheres?

Haver quem considere que a mulher tem um papel na sociedade relacionado com a sua capacidade reprodutiva é problemático. É evidente que é um confronto ideológico. Há pessoas que acham que as mulheres têm essa responsabilidade, têm de estar em casa, de cuidar dos filhos e que biologicamente elas é que estão adaptadas não só para os ter, como para os cuidar, e que os homens terão outros papéis. Mas depois, no que tem a ver com as políticas de natalidade, esses são os mesmos que negam direitos de parentalidade, negam salários dignos aos trabalhadores e às mulheres, particularmente. Negam redes de creches públicas. Esse discurso está massificado nos Estados Unidos. Não há direitos de licenças de maternidade, não há direito à saúde, não há direito à educação, não há direito a nada, e depois como é que esse discurso é proferido pelos mesmos que acham que a natalidade está a acabar por culpa das mulheres? É evidente que as mulheres não têm nenhum tipo de missão e de papel obrigatório do ponto de vista da reprodução. Nem as mulheres nem os homens, já agora.

A luta das mulheres deve integrar também os homens?

As mulheres precisam de espaços para discutir e têm de ter liberdade para criar esses espaços. Também é papel dos homens juntarem-se à luta das mulheres, ter a sensibilidade de perceber que muitas vezes as mulheres não conseguem intervir da mesma forma, num espaço como um debate, quando há 10 homens a falar, uma mulher a falar e as outras todas caladas. Há circunstâncias que são inibidoras da participação das mulheres, já para não falar das que estão em casa e, portanto, os homens é que estão mais nesses espaços de discussão e sociais. A luta das mulheres é a luta das mulheres, as mulheres é que têm que definir como se organizam e em que moldes. Mas é evidente que passa pela discussão com os homens, porque passa pela discussão com todos. A luta das mulheres nunca poderá ser bem sucedida se não houver uma grande transformação das mentalidades e dos valores e isto deve fazer-se em discussão com os homens, sobretudo aqueles que estão do lado de cá da barricada.

“Há circunstâncias que são inibidoras da participação das mulheres, já para não falar das que estão em casa e, portanto, os homens é que estão mais nesses espaços de discussão e sociais.”

Como se sentiu, enquanto mulher, quando soube do caso de Giselle Pelicot, violada em grupo durante anos (incluindo pelo marido), e sobre as notícia de que há canais no Telegram em Portugal onde dezenas de milhares de homens trocam fotos íntimas de mulheres sem autorização?

É um caso muito chocante. Tem uma série de pormenores que são chocantes, mesmo para quem já possa ter uma ideia de que estas coisas são muito comuns e generalizadas. O facto de isto surgir agora é importante porque leva-nos a pensar coisas que se calhar há 10 anos não pensaríamos, estas lógicas de que “o problema são os imigrantes” [que têm vindo a ser associados, pelas forças de extrema direita e com impacto mediático, a casos de violência sexual na Europa]. Não são. E há aqui questões psicológicas muito importantes. Haverá aqui, provavelmente, algum tipo de distúrbio, é muito mais complicado do que a relação que existe entre os homens e a pornografia, por exemplo, que já é problemático. Ou entre os homens e a prostituição, que também é muitíssimo problemático. Ficamos a pensar até do ponto de vista das gerações. Como é que isto se pode abordar do ponto de vista da sociedade como um todo? Não sei quais as respostas, senão transformar todo o sistema e a forma como se lida com a sexualidade desde muito cedo.

A violência doméstica continua a ser o crime mais praticado em Portugal. Contudo, parece que não é uma prioridade quando se fala de criminalidade.

É um problema com muitos fatores relacionados com a integração social, o trabalho, o consumo de substâncias, com questões psicológicas mais profundas. Não me parece que seja um tipo de criminalidade que deixe de existir porque passa a haver penalização. É evidente que há problemas muito objetivos quando essas mulheres já denunciaram uma ou duas vezes e continuam a estar expostas àquela pessoa, não conseguem que a justiça as proteja e acabam assassinadas. Mas isso, digamos, é o fim, o último momento do problema. O problema começa muito antes e aí é que deveria haver mais meios para se conseguir pensar de forma mais profunda em relação às origens e aos fatores que levam estas situações a acontecer.

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