Se ouvirmos os liberais cá da Praça, todos os problemas da ferrovia se devem ao seu carácter público e tudo se resolve com mais privatizações e mais concorrência. Como falam nos meios de comunicação social amestrados, ninguém os confronta com três factos absolutos: (1) O processo de liberalização da ferrovia na União Europeia leva mais de 30 anos, sendo Portugal um dos países onde esse processo foi mais longe; (2) Os países do mundo onde a ferrovia se desenvolve e ganha crescente importância na mobilidade são países onde a ferrovia está sob controlo público; (3) A liberalização destruiu o sistema ferroviário britânico, que levou Governos liberais a serem forçados à renacionalização da infraestrutura e progressivamente de toda a exploração.
Ora, apesar da realidade exigir uma ruptura completa com as políticas em curso há mais de 30 anos, o actual governo só oferece mais do mesmo.
Manter a Infraestrutura Liberalizada
A incapacidade dos governo em concluir o Ferrovia 2020 expôs as consequências da liberalização: o país deixou de ter uma empresa ferroviária capaz de planear, projectar, construir, manter e fiscalizar a infraestrutura, tem agora uma empresa (a IP) cada vez mais especializada em subcontratar, em assinar cheques cada vez maiores para obras que se arrastam cada vez mais. É por isso que estamos com o Ferrovia 2020, à entrada de 2025, com 15% dos projectos concretizados. Ou seja, quatro anos depois da data em que o último projecto deveria estar concluído!
É preciso reconstruir a REFER (o operador público de infraestrutura, fundido em 2015 com as Estradas de Portugal para gerar a IP) e a sua capacidade operacional e reunir a REFER e a CP numa actuação coordenada. Mas a liberalização prossegue, mudando apenas o rosto de quem promete que agora é que vai ser. Num país civilizado, para se fazer uma obra é preciso engenharia ferroviária e capacidade de produção (incluindo a montante do sector, como na Siderurgia). Em Portugal, o principal é contratar um assessor jurídico, um assessor financeiro e um assessor de Comunicação.
Continuar a pulverizar a ferrovia
O programa do Governo assume a regionalização da ferrovia. Procura o Governo cavalgar as justas insatisfações com a CP para aprofundar o seu processo de destruição. Olhemos, como exemplo, para o Algarve, onde a ferrovia podia e devia desenvolver um papel central na mobilidade. A promessa de entregar a gestão da exploração à região é uma resposta demagógica e inconsequente, que se destina a fazer esquecer os verdadeiros problemas: (1) A Linha não está modernizada, pois as obras arrastaram-se; (2) A Linha não se desenvolveu como poderia e deveria (nomeadamente ligando à Universidade e ao Aeroporto); (3) A CP não tem os comboios e os trabalhadores para realizar uma oferta fiável e de qualidade capaz de atrair a procura potencial; (4) A IP não tem investido na melhoria das Estações, na sua qualidade e conforto, nem nos sistemas de informação.
Retalhar a CP em troços para fazer a sua regionalização e privatização progressiva não é a resposta aos problemas criados pela liberalização. É mais liberalização, e são mais promessas e ilusões em vez de respostas e soluções concretas.
Fertagus
Olhemos para Lisboa e para a única linha privatizada, a que faz a ligação pela Ponte 25 de Abril. Nos primeiros anos a coisa funcionou bem – graças aos comboios comprados pela CP, à Linha construída pela REFER e ao facto das estações estarem entregues ao operador, o que não acontece na restante ferrovia – mas com um grande senão: o preço era o dobro do praticado na CP, e não havia passes intermodais. Quando em 2015 a Fertagus foi obrigada a aceitar a integração no passe intermodal (recebendo uma generosa compensação por passageiro, bem maior que a paga à CP), e os preços desceram muito, aumentou a procura e baixou a qualidade. E que fez o privado? Nada. Exigiu que o Estado lhe desse mais comboios (da CP) e exigiu que o Estado pagasse as obras na infraestrutura para poder alargar a oferta às Praias do Sado e ao Oriente.
Apesar do mau serviço que presta, deste lhe ficar mais caro que o da CP, e de o privado nada ir investir na melhoria do serviço, em Setembro o governo alargou a concessão mais uns anos.
Passe Ferroviário Verde
O Governo impôs à CP o Passe Ferroviário Verde, transformando a CP na única empresa do mundo onde o passe mensal é mais barato que um bilhete. Impôs umas regras absurdas destinadas a limitar-lhe a utilidade prática e subfinanciou o passe, ou seja, colocou a CP a assumir os custos do mesmo. Para amanhã usar a dívida e os problemas criados como mais uma razão para privatizar.
Quando aquilo que é necessário é a plena integração da CP nos passes regionais e interregionais (como acontece na AML), promovendo a crescente opção pelos transportes públicos. E melhorar a oferta, claro. Sem comboios, sem linhas electrificadas, sem estações dignas e eficazes, não há ferrovia que se preze.
A cereja no topo do bolo
O Governo anunciou a proposta de Lei 37/2024 como destinada a melhorar a segurança ferroviária proibindo o consumo de álcool pelos maquinistas. Como se tal não fosse já proibido e como se houvesse algum acidente cuja explicação resultasse desse consumo. Um nojo de atitude. Mas quando se conheceu o texto da proposta ela revelou que nas suas 30 páginas, só umas poucas são dedicadas a precisar os termos dessa proibição, as restantes são destinadas a agilizar os mecanismos – discretamente aprovados pelo anterior governo – para que empresas estrangeiras possam operar em Portugal.
Porque com a política de direita o que se promete vir a fazer merece dezenas de Conferências de Imprensa, enquanto o que de facto é feito é-o sempre com a máxima discrição.