O genérico revela um plano em contra-picado de um prédio. Esta é a grande “Casa de Mulheres”, filme que o sueco Hampe Faustman (1919-1961), muito menos conhecido que os conterrâneos Ingmar Bergman e Victor Sjöström, realizado em 1953. Faustman (também actor em mais de uma dezena de filmes) interessou-se pelo romance homónimo da escritora e dramaturga Ulla Isaksson, e deu-lhe o papel de argumentista na adaptação ao cinema.
Em “Casa de Mulheres”, entramos directa e profundamente numa modernidade polifónica, na qual a mulher é o centro emocional, social e relacional. Neste edifício de Estocolmo só vivem mulheres. Uma premissa que permite observar à lupa um mosaico de personagens femininas com os seus desejos, medos e frustrações.
Entre elas, está Isa (Eva Dahlbeck), que lê o futuro das vizinhas, e se assusta com o que lhe aparece nas cartas. Isa não participa na festa que Sylvia (Annalisa Ericson) organiza. A sensatez e alguma mágoa relativamente ao passado afastam-na do que considera serem acções de superfície. Sentimos o despudor, a excentricidade e excessos dessa festa. Contudo, é através desta espécie de “fachada maquilhada” que aquelas mulheres se afastam dos problemas e preenchem o vazio interior.
A reverberação masculina na ansiedade
das mulheres
São poucas as personagens masculinas, e as suas presenças são relevantes e reveladoras nas marcas que deixam nas mulheres. Tryggve (Geirg Lokkberg) é casado com Anna, e está apaixonado por Eva (Kerstin Palo). Eva gosta de ser adorada por ele, ao ponto de, no final, a sentirmos mais submetida que apaixonada. Anna sabe do adultério. Cala-se perante o olhar de todas as vizinhas; mas intui que marido acabará sempre por regressar a casa. É consigo que passa um longo período de férias, afastado da frescura e jovem de Eva.
Rosa (Ulla Sjoblo), criada de Sylvia, é ludibriada por um homem. Está tão carente que faz a si mesma os gestos de afecto que vê Tryggve fazer a Eva. E o homem, quer entrar na festa das mulheres, e consegue enganá-la. O resultado é dramático. Rosa não sabe como lidar com o silêncio do que ele lhe fez. E, numa das cenas mais pungentes do filme, sobe ao topo do prédio. Despe-se, caminha enlouquecida no telhado, perante uma cidade anónima que a vê à distância, e é tanto ou mais indiferente que as inquilinas do prédio onde trabalha.
Há uma dimensão de ansiedade e tragédia nesta tónica coral no feminino. A sociedade contemporânea parece colocar as mulheres que ousam ser independentes sob pressão. Por outro lado, muitas vezes elas são as suas maiores inimigas. O grupo desdenha da posição passiva de Anna face à traição do marido. Também censura a viúva que se dedica ao passado, em lugar de “apanhar os comboios que estão sempre a passar na estação”. Esta é a questão nevrálgica de “Casa de Mulheres”. Entre tantas conversas, encontros e desencontros nas salas, cozinhas e escadas do prédio, as vidas destas mulheres acabam por estar resumidas aos relacionamentos que tiveram, e têm, com o sexo oposto. Mesmo Isa, que se mantém uma espectadora distante dos jogos pessoais e eróticos das outras, está a sarar o luto da morte do segundo marido. Prefere ficar sozinha, a arriscar voltar para o primeiro homem com quem se casou. Vemo-la mesmo confessar ao canário que tem em casa que, talvez ele preferisse ser livre como os pássaros que voam lá fora.
A ousadia de Faustman é a de construir todo um filme em torno da perspectiva feminina. Uma óptica capaz de sublinhar que a liberdade emocional é terreno árduo de trilhar pelas mulheres. Existem preconceitos e receios. Existe, acima de tudo, a carência e solidão. Estas duas podem ser mortais.
O filme, com 71 anos, transpira a actualidade da luta necessária pela igualdade de género. Esses sinais são ainda mais importantes no que respeita à dimensão afectiva. Quase todas as personagens de “Casa de Mulheres” são economicamente livres. O problema é a autonomia no amor. Por isso, a madrugada festiva, entre exuberância e delimites, é uma libertação temporária da constelação de personagens femininas. Quando o dia desponta, nos vários apartamentos, renascem as dores daquelas raparigas e mulheres. Só a união na mágoa e alegria lhes permite continuar a entrar e sair daquele estranho edifício de Estocolmo. Um microcosmo metafórico e sensível sobre a Mulher.