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“A Revolução que me Ensinaram”: o confronto entre a narrativa pessoal e a História de Abril

Foi numa das últimas noites de verão que o Clube Estefânia recebeu, no Espaço Escola de Mulheres “A Revolução que me Ensinaram”. Trata-se de uma criação da actriz, encenadora e investigadora Joana Cotrim, que contou com a parceria da actriz Rita Morais. Comecemos pelo enquadramento da peça e génese do projecto. Joana Cotrim tinha uma questão pessoal ligada à forma como a família viveu e contava o que aconteceu no 25 de Abril de 1974 e meses que se seguiram. O seu avô materno foi um dos mentores do Partido Liberal, força política, que, a 28 de Setembro de 1974, quis levar a cabo a chamada “revolução silenciosa”, contra o medo da implementação do comunismo em Portugal. Essa força reaccionária foi travada; o avô e restante família emigraram para o Brasil.

A história de Joana começa neste estilhaçamento. Nasce no Rio de Janeiro, onde vive até aos oito anos. Vem nessa altura para Portugal. Não se sente portuguesa, está longe do lugar onde passou os primeiros anos. Além do exílio, de se sentir apátrida, subsistem em si dúvidas sobre os acontecimentos históricos em torno do mais importante momento que o nosso país viveu no século XX.

É este o percurso autobiográfico de “A Revolução que me Ensinaram”: perceber porque é que a família parecia ser contra o projecto de liberdade que se desenvolvia em Portugal. Para isso, Joana Cotrim conta com a parceria de Rita Morais, que serve de interlocutora, e interpreta também o papel de mãe de Joana.

De que lado da história estar?

O cenário é esparso. Um enorme planeta Terra parece simbolizar as viagens de um ao outro lado do mundo da protagonista; as plantas servem de suporte à narrativa (a mãe rega-as no seu jardim do Rio, por exemplo); a mesa e cadeiras são um ponto de apoio para a reflexão sobre o que vai sendo contado. Uma tela projecta imagens memorália da actriz, às quais se juntam outras, de arquivo, e ainda recortes de imprensa. Esta banda de imagética é complementada pelas entrevistas áudio que a artista fez à mãe. As histórias que a progenitora vai tecendo são complexas. O pai, avô de Joana, foi para Angola, era contra a guerra e a favor da independência dos povos colonizados. A mãe confessa que se sente tripartida, sem saber se é de África, de Portugal ou do Brasil. Segundo a mãe, o avô só tinha medo do regime comunista. E foi expulso de Portugal. Joana confronta-a com factos, contrapõe ideais e é contra um certo enviesamento da História que a mãe parece proclamar. Vemos isso dramaturgicamente quando Rita Morais assume o papel de mãe, e Joana a enfrenta com aquilo em que acredita e que foi ouvindo e vivenciando no país político pós Abril de 74.

Na infância, Joana pressentia o fechamento da família no Brasil. Vemos a mãe a cantar “Uma Casa Portuguesa” enquanto rega o quintal, canção que apela ao destino popular de uma “alegria na pobreza”, algo próximo do que se proclamava antes da democracia. A jovem Joana sentia, pelo contrário, a energia, liberdade e o entusiasmo do Rio de Janeiro, onde tinha os amigos e absorvia a cultura, mais do que as tradições vindas do país de origem materna.

Quando chega a este lado do Atlântico tem um choque. Ela é a brasileira. Os outros miúdos, mesmo que de forma inocente, segregam-na e quase a reduzem à sua nacionalidade. Joana tem de reaprender a viver outra vida e modos de estar. Pensa todos os dias no Rio de Janeiro. Tenta adaptar-se.

Mas sabe que as memórias da infância são apenas isso, um passado perdido depois da viagem para Portugal. Parte para Bruxelas, quer sentir-se livre e descobrir o mundo. É considerada pela família uma jovem herdeira da Revolução dos Cravos; ao contrário da mãe, a velha herdeira, com outras ideias e vivências.

A aceitação e a luta pela liberdade de expressão

Joana Cotrim é a “ovelha negra” da família, que acaba por aceitar a visão política do avô. O dilema da actriz em palco, passa por esse confronto com aqueles que lhe são mais próximos. As palavras que deixa na folha de sala do espectáculo são esclarecedoras: “Quantas vezes me perguntei se estaria a ser honesta, se não estaria a trair aqueles que amo, se estaria a ter rigor histórico, se não caíra no erro de dizer aquilo que os outros querem ouvir. Queremos estar do lado certo da História, nem que para isso tenhamos de abreviar os factos e retirar a emoção contida nas relações familiares.”

A dramaturgia de “A Revolução que me Ensinaram” é simples para salientar dois lados; e é preciso tentar esclarecer o que aconteceu com a tal acuidade histórica, o que foi a revolução e o PREC (Processo Revolucionário em Curso). O sonho de Abril, como a peça de Joana Cotrim convoca, é o de uma sociedade livre, mais justa, solidária e igualitária. Essa luta resistente por direitos sociais, económicos, culturais, habitacionais e educacionais continua. O espectáculo permite concluir que cada um tem uma história pessoal e familiar para contar e voltar a convocar. Para que a memória não se esbata. E a liberdade prossiga como centro da sociedade em que vivemos.

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