Entrevista

Trabalho

Hans Melo: “O que eles nos pagam mal dá para comer e pagar o arrendamento”

Hans Melo é brasileiro, tem 38 anos e veio para Portugal há dois anos, à procura de melhores condições de vida. É um dos milhares de estafetas que fazem entregas, sobretudo de refeições, em nossas casas. Num setor em que trabalham principalmente trabalhadores imigrantes, a precariedade e os baixos rendimentos levaram-nos a encabeçar algumas formas de luta por dignidade e melhores condições.

Quantas horas de trabalho é que um estafeta pode chegar a fazer?

O estafeta que realmente tem isto como primeira atividade, como primeiro sustento, na verdade, não tem um horário definido. O que ele tem em mente é: eu preciso de voltar para casa com dinheiro. Então, o normal é que a gente passe das oito horas. Trabalhamos 10, 12, 14 e, às vezes, até 16 horas. Porque a intenção é bater aquela meta e a meta é: eu preciso de voltar com o suficiente para casa. 

Teve de pagar o seu equipamento para trabalhar?

Nós, estafetas, pagamos muita coisa. Por exemplo, pagamos o telemóvel, pagamos a internet desse telemóvel, a manutenção… já que o tempo todo ele está à mão. Em relação à roupa, por exemplo, elas desgastam-se muito rápido. Sai tudo do nosso bolso, combustível, troca de óleo, troca de pneu. Absolutamente tudo. O estafeta é que paga isso. Em relação à mota, eu comecei alugando, como a maioria dos estafetas começam. E depois comprei, e foi quando a situação melhorou um pouco, porque, em média, o aluguer delas anda por volta dos 50 euros por semana. Então, estamos falando por volta de 200 euros por mês. A média do preço das mochilas varia por volta dos trinta e poucos euros.

Tem uma ideia de quantos quilómetros faz por dia?

Antes, medíamos isso, até pela curiosidade. Logo quando começamos a profissão. Hoje, não recordo, mas… com certeza, mais do que uns 100 quilómetros dentro da cidade. Pode ir a 150 km… Já cheguei a trabalhar 200 km, entre becos e ruas estreitas, todos os dias e atrás dos carros.

Há muitos acidentes no vosso setor? 

Sim, acidente é com muita frequência. Normalmente, não há acidentes fatais, mas já tivemos alguns. Os estafetas passam semanas ou meses para ter uma recuperação. No meu caso, dois. Num deles, fiquei mais ou menos 60 dias praticamente sem poder trabalhar. E as empresas não cobrem nada disso. Elas até têm um seguro e quando é acionado ele cobre, vamos dizer, aquelas coisas superficiais como arranhões, um inchaço, um remédio para a dor. No meu caso, não precisei de cirurgia. Mas em casos mais graves, onde o estafeta precisa de cirurgia, são muitos os relatos de que as empresas ignoram e depois eles descobrem que o plano de assistência que elas oferecem não cobre todas essas medidas necessárias.

Que tipo de vínculo têm com empresas como a Uber, a Glovo ou a Bolt?

A relação é a mais distante possível, na verdade. Porque, por exemplo, se eu precisar agora de falar com a Uber ou a Glovo, não consigo, tinha que mandar um e-mail e aguardar. Não consigo ter uma ligação direta com a empresa para resolver um problema urgente. “Aconteceu agora aqui um problema e preciso de falar com a empresa”, não tem como, a não ser quando estou realmente com um pedido nas costas. Só que, mesmo sem estar com esse pedido nas costas, por exemplo, digamos que eu esteja agora em frente a um McDonald’s, eu já estaria ao serviço dessas empresas e ao serviço do cliente. Direta e indiretamente ao serviço dessas empresas, porque já estou à disposição. Senão, eu estaria em casa, aguardando, assistindo um filme, mas eu não posso fazer isso. Porque elas chamam quem está no ponto e o ponto é em frente às lojas, não é? Elas vão chamando num raio maior conforme não vão encontrando alguém disponível no raio mais próximo àquele ponto. Então, isso significa que eu tenho que estar à disposição deles, obrigatoriamente, à disposição do cliente, dos restaurantes e das empresas. Só que essa relação é muito distante, com todos, absolutamente todos. Eles nos tratam realmente como prestadores de serviços mas em relação a todo o resto, na prática, é como se nós fossemos funcionários. Nós pagamos por todo esse material e esses custos para manter a viatura, quando na verdade o dinheiro que eles nos pagam não é suficiente, mal dá para comer e pagar o arrendamento. Então, o estafeta quase que vive para pagar o próprio trabalho, é mais ou menos assim…

O estafeta pode recusar algum serviço?

Nós, como trabalhadores independentes, deveríamos poder escolher realmente qualquer entrega, e termos os detalhes dessas entregas. Mas não colocam os detalhes das entregas à disposição. A Glovo detalha um pouco mais a entrega, por exemplo, quanto paga por quilómetro, quanto paga por uma espera, mas detalha tudo só depois que você termina a entrega. Por exemplo, se ainda jogam uma segunda entrega eles não dizem quanto vão pagar, fica tudo “mascarado”, só aparece a mensagem “tem um nova entrega” e supõe-se que é a mesma rota. Mas muitas vezes não é. É um pedido para o norte e outro para o sul. E o cliente do norte vai ficar aguardando e não vai entender porque é que eu recolhi o pedido dele primeiro, mas fui entregar ao cliente lá do sul da cidade. E pensa: por que está indo ele para o lado errado, o lado contrário? E o estafeta só vai saber quanto vai receber pelos dois depois.

Quando se vai reclamar, eles dizem: “Não, está correto, é isso mesmo, é tudo informatizado, o sistema já entende isso automaticamente e o computador não erra”. Essa é a resposta deles. Só que a gente sabe que tem intervenção humana o tempo todo, às vezes eles corrigem. 

E há consequências quando recusam vários pedidos?

No meu caso, eles nunca chegaram a bloquear a minha conta. Mas outros colegas contam que já receberam a advertência e até já me enviaram prints dizendo “olha a minha conta foi sinalizada”. Dantes, bloqueavam a pessoa por uma semana. A conta ficava realmente bloqueada, o acesso negado, e dizia: “A sua conta estará bloqueada até ao dia tal porque você recusou muitas entregas”. Com essa pressão que nós estamos fazendo como estafetas e com a comunicação social junto, isso pressiona-os muito. Eles recuaram um pouco. Então agora eles dizem: “não, nós damos autonomia porque são trabalhadores independentes, eles rejeitam quando querem.”

Às vezes é fácil rejeitar uma quarta seguida num horário de muito movimento. Noutras vezes, estou parado uma hora e querem que eu saia por dois ou três euros. Nós muitas vezes não conseguimos tirar 4 euros por hora, nem 3 euros por hora. Por isso é que o estafeta é obrigado a escolher um pouco também.

Quantas vezes está chovendo o dia todo e a Glovo implanta naquele momento o bónus de chuva durante aquela uma ou duas horas, mas já choveu o dia todo. Eu não sei se eles estão ali cobrando já do cliente por essa chuva durante todo o dia, mas para o estafeta esse valor não é repassado. Por exemplo, digamos que o senhor pediu um kebab simples a 4,50 euros e a entrega foi de mais 4 euros. A pessoa olha e diz: “Caramba, pedi um kebab de 4,50 euros e vou pagar mais 4 pela entrega. Tudo bem. Coitadinho do estafeta que está vindo nessa chuva, ele merece”. Só que às vezes para o estafeta é repassado apenas 2 euros. As empresas lucram em cima da entrega e lucram em cima do que elas cobram dos restaurantes, que vai ali por volta dos 20 ou 30%. Até brinco dizendo que se os lojistas parassem para pensar eles deveriam estar junto connosco, com os estafetas, e fazer também as suas greves, porque é absurdo, por exemplo, ter um restaurante, e deixar tanto às aplicações. 

Considera que os trabalhadores deviam ter um vínculo estável com essas plataformas?

Sim. A nossa principal reivindicação é um tratamento, antes de mais, digno, e também uma consciencialização. Normalmente, num chão de fábrica, por exemplo, as pessoas criam um vínculo, vêem-se umas às outras todos os dias, o problema de uma é diretamente o problema da outra. E depois visitam as casas uns dos outros, as pessoas viram amigos. No caso dos estafetas existe uma dificuldade nova. A rotatividade da profissão é muito grande e não dá tempo de criar um vínculo como numa empresa normal. Temos essa dificuldade para juntar os estafetas e um empenho muito grande em criar amizade com eles, em tentar conversar. Muitas vezes, deixamos de trabalhar para estar ali conversando, trocando ideias e ganhar confiança. 

Deveria haver um valor fixo mínimo imposto a estas empresas?

Deve haver porque senão eles vão continuar a nos explorar com essa ideia de que o estafeta escolhe o valor. Na verdade, são eles que escolhem quanto nos querem pagar.

A maioria dos estafetas é imigrante?

Não vou dizer 90% porque talvez seja um valor muito exato, mas com certeza mais de 80% é imigrante. A esmagadora maioria é brasileira. Talvez não em Lisboa porque há muitos asiáticos. Mas no resto do país somos muitos. 

Sente que as plataformas se sentem confortáveis por serem maioritariamente imigrantes e assim poderem pagar menos?

Sim, por exemplo, depois das manifestações que fizemos em Braga, os estafetas queixam-se de que os pagamentos diminuíram ainda mais. Em Coimbra também. Digamos que eu vim sem a chamada manifestação de interesse, agora já não há mais acesso. Consigo trabalhar no país? Consigo. Chego a uma frota, que vai ter um contato dentro da Uber e da Bolt. Se eu tiver 150 euros, passo a um dono de frota, ele passa uma parte a alguém dentro da Uber, pegam documentos falsos. Nós levámos isso ao parlamento e dissemos que estão ocorrendo muitos crimes. É aí onde entra a lavagem de dinheiro, que acontece muito dentro dessas frotas, a sonegação e o tráfico humano, até. Porque eles trazem pessoas, principalmente do Médio Oriente, que têm dificuldades com a língua, têm dificuldades com tudo. 

Eles trazem essas pessoas para cá prometendo emprego, prometendo um futuro. Quando chegam aqui, essas pessoas não têm acesso mais aos documentos, eles ficam com os documentos dessas pessoas, e elas vão para o delivery. Passam três, quatro meses ali no balcão atendendo, dentro de uma loja de kebabs. Depois, têm contas e motas numa frota que têm ali entre eles e dizem: “Olha, vocês vão trabalhar, vamos dar a vocês alojamento, vamos dar a mota, vamos dar o combustível… Agora no final do dia, vocês vão dividir com a gente tudo o que vocês fizerem, a conta também é minha. Vocês só vão fazer a entrega”.

Artigos Relacionados