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Palestina

Estudantes solidárias com a Palestina silenciadas pela AAC, e o padrão que se repete de norte a sul

Desde que Israel iniciou a sua campanha genocida em Gaza, as vozes críticas de Israel ou solidárias com a Palestina têm sido sistematicamente descredibilizadas, reprimidas ou silenciadas no Ocidente. Portugal não é excepção, e Coimbra é palco de um dos mais graves casos de silenciamento.

Não é surpresa que Coimbra – pólo cultural e universitário e 4ª maior cidade do país – seja um dos focos de maior mobilização pelo cessar-fogo e por uma Palestina Livre. Desde meados de Outubro, as manifestações, vigílias, debates, projecções, clubes de leitura e reuniões abertas sucedem-se, semana após semana, tal como em Lisboa e no Porto.

No final de Novembro, as e os estudantes que haviam estado na génese do movimento Coimbra pela Palestina decidem ser necessário levar o debate à comunidade estudantil, que não podia, no seu entender, ficar indiferente perante “os milhares de estudantes palestinianos mortos, os 625 mil estudantes que vêem negado o seu acesso à educação na Faixa de Gaza [desde 7 de Outubro], e as mais de 200 escolas e universidades que foram bombardeadas indiscriminadamente”. É iniciada a recolha de assinaturas para convocar uma Assembleia Magna por iniciativa dos estudantes.

Dezembro: AAC silencia estudantes

A Associação Académica de Coimbra (AAC) representa os 28 mil estudantes da Universidade de Coimbra (UC), sendo a Assembleia Magna o seu orgão máximo de decisão e participação estudantil. Para além de poder ser convocada pela Direcção Geral (DG), uma Magna pode também ser convocada por 5% dos seus associados, algo que não sucede há mais de 10 anos.

A 4 de Dezembro, são entregues mais de 1400 assinaturas a pedir uma Magna para discutir a situação na Palestina. Face à incapacidade da Mesa da Assembleia Magna (MAM) em verificar a validade de parte das assinaturas, as estudantes entregam 300 assinaturas adicionais a 7 de Dezembro. A partir daí, de acordo com os Estatutos da AAC, deve realizar-se uma Magna num prazo máximo de 10 dias, e a sua convocatória ser divulgada com 5 dias de antecedência.

A burocracia da AAC – DG, MAM e Conselho Fiscal – tudo faz para que ela não aconteça. Resolvida a questão das assinaturas, tentam convencer as estudantes a adiar a sua realização para o início de Janeiro. Dada a urgência da discussão face ao colapso do cessar-fogo uma semana antes, as estudantes recusam o adiamento, determinadas a realizar a Magna antes das férias de Natal.

Estes orgãos colocam um novo entrave burocrático – tomando os novos membros da MAM posse a 11 de Dezembro, invocam uma alegada “zona cinzenta” nos Estatutos que tornaria anti-estatutário o então presidente da MAM convocar a Magna para que esta fosse presidida pela nova presidente, entretanto empossada. A expressão “zona cinzenta” não é usada por acaso – em nenhuma parte dos Estatutos existe algo que sugira, explícita ou implicitamente, a impossibilidade de uma situação como esta. O que, sim, está explícito é que, havendo um pedido de Magna por 5% dos estudantes, esta deve acontecer num prazo de 10 dias.

A 8 de Dezembro, as estudantes denunciam em conferência de imprensa os entraves colocados pela AAC e apelam a Gonçalo Pardal, então ainda presidente da MAM, que emita a convocatória para que a Magna se possa realizar antes de 15 de Dezembro, afirmando que “nada a nível estatutário inviabiliza que [a Magna] aconteça antes do final do período lectivo”.

O mesmo conclui o advogado Rui Mendes, a quem as estudantes pedem um parecer jurídico, divulgado a vários orgãos de comunicação social e aos corpos gerentes da AAC no dia seguinte. Rui Mendes, formado pela Faculdade de Direito da UC e antigo vice-presidente da AAC, afirma no seu parecer:

«O mandato da Mesa da Assembleia Magna apenas cessa com o termo do mandato e a tomada de posse de nova Mesa da Assembleia Magna. (…) A convocação de uma Assembleia Magna pela Mesa da Assembleia Magna, mais do que uma competência estatutária (…) é um dever estatutário.»

Corre o dia 9 de Dezembro, o último em que é possível emitir a convocatória para a Magna acontecer na última quinta-feira de aulas. A convocatória não é emitida. A suposta “zona cinzenta” dos Estatutos, que a burocracia da AAC nunca chega a especificar onde está pois não existe, é usada para justificar o incumprimento das disposições expressas nesses mesmos estatutos.

Estas estudantes, bem como os 1700 estudantes que subscreveram o pedido de Magna e toda a comunidade académica da UC, vêem assim negado o seu direito democrático a debater um tema do seu interesse.

Um silêncio ensurdecedor

Os novos membros da DG e da MAM tomam posse a 11 de Dezembro. À saída, os participantes na cerimónia têm de passar por dezenas de estudantes que levam a cabo um protesto silencioso enquanto seguram imagens dos crimes de guerra cometidos pelas forças israelitas. Na faixa que encabeça o protesto lê-se: “Pedimos a palavra porque o silêncio é ensurdecedor”.

No local, um cenário bizarro põe em evidência as contradições – os e as estudantes silenciadas, em fila e em silêncio, enquanto antigos e novos dirigentes da AAC caminham desconfortáveis, de olhos no chão, tentando evitar as imagens da barbárie imposta por Israel à população de Gaza; o som de bombas a cair e explosões acompanha o protesto, entrecortado pela amena cavaqueira de uma elite estudantil indiferente aos seus colegas silenciados.

Os membros actuais da DG e da MAM foram eleitos em Novembro, numas eleições que contaram com a participação de apenas 16% dos estudantes da UC, sinal do progressivo afastamento da AAC da comunidade estudantil ao longo das últimas duas décadas. Carolina Rama, eleita nova presidente da MAM com uma campanha que prometia “voltar a aproximar os estudantes da Assembleia Magna”, começa o seu mandato com a não-realização da primeira Magna pedida pelos estudantes em mais de uma década.

Para se livrarem da responsabilidade pelo incumprimento dos estatutos e o desrespeito pelo direito dos estudantes a uma Magna, Renato Daniel, vice-presidente cessante e actual presidente da DG, e Carolina Rama tentam convencer as estudantes proponentes a assinar uma declaração em como “desistem do pedido de convocatória”, “assentem adiar a realização” da Magna “para fora do prazo estatutário”, passando então a não se verificar “a obrigatoriedade de se realizar” a Magna.

Face à resposta negativa das estudantes, e ao aperceber-se de estarem já ultrapassado os prazos estatutários, a MAM procede a uma reinterpretação dos Estatutos da AAC – os prazos estabelecidos passam a ser contados em dias úteis e não consecutivos, ao contrário de todas as anteriores equipas da MAM. É então emitida uma convocatória de Magna para dia 21/12 – 17 dias após a primeira entrega de assinaturas, 14 dias depois da entrega das assinaturas adicionais, quase uma semana após o fim das aulas e apenas três dias antes do Natal.

A marcação da Magna para esta data, em que a maioria dos estudantes já terá abandonado a cidade, torna impossível o que as estudantes querem – uma discussão que envolva a comunidade estudantil. Além disso, considerando as dificuldades para conseguir o quórum necessário para a realização de uma Magna já em condições normais, é óbvio que esta Magna está, à partida, condenada ao fracasso.

No final, os corpos gerentes da AAC ainda tentam responsabilizar as estudantes pelo cancelamento da Magna, pois estas não entregam a moção a ser levada a discussão, quando o fazem por considerarem que apresentar qualquer documento para esta Magna seria reconhecer a legitimidade deste processo kafkiano. 

Janeiro: Genocídio vai a Magna

No dia 22 de Janeiro, em plena época de exames, tem lugar a primeira Magna do novo mandato dos orgãos gerentes da AAC. Mas a odisseia de silenciamento estava longe de ter terminado.

A Magna é convocada pela MAM a pedido da DG, e é, portanto, a DG que propõe os temas a serem incluídos na ordem de trabalhos. Depois do silenciamento no mês anterior, seria demasiado descarado deixar o tema de fora, pelo que a “Guerra na Palestina” é incluída como terceiro ponto.

As estudantes proponentes da Magna de Dezembro não são informadas previamente de que esta vai acontecer, descobrindo apenas quando a sua convocatória é emitida, 5 dias antes. E, como esta Magna é iniciativa da DG, é a DG que tem precedência na apresentação de moções a levar a discussão em cada um dos pontos.

A DG apresenta uma “Moção pela Paz no Médio Oriente”, que não refere uma única vez as palavras “genocídio” ou “apartheid”, nem a realidade enfrentada pelos estudantes palestinianos. Para além disso, está repleta de formulações vagas que, na maior parte dos casos, pecam por não apontar claramente as responsabilidades de Israel neste genocídio e nos 75 anos de ocupação. Vários estudantes presentes apontam múltiplas insuficiências a esta moção.

As estudantes proponentes da Magna de Dezembro apresentam e defendem uma moção alternativa, intitulada “Posicionamento Público da AAC em relação ao genocídio em curso na Palestina” – uma moção mais longa e fundamentada, que denuncia o genocídio, a ocupação e o apartheid e apresenta várias propostas concretas de solidariedade para com o povo palestiniano. Além das críticas gerais e vazias a uma suposta “radicalidade” desta moção, as únicas críticas concretas centram-se na proposta de pressionar o Estado Português para efectuar um “corte das relações diplomáticas com o Estado de Israel (…) até que cesse a ocupação e o regime de apartheid israelita”.

Após duas horas de debate, e com o número de presentes a aproximar-se do quórum mínimo para a Magna continuar reunida, a discussão deste ponto é interrompida antes de ser tomada uma decisão final sobre o posicionamento da AAC. Carolina Rama promete que a discussão deste ponto será concluída na Magna seguinte, a 7 de Fevereiro, bem como os restantes pontos que não haviam sido abordados.

Fevereiro e Março: Silenciamento continua

No entanto, ao lançar a convocatória, Carolina Rama colocou a “Continuação da Discussão da Guerra na Palestina” como último ponto de uma longa de ordem de trabalhos. O resultado foi o que seria esperado: a Magna de 7 de Fevereiro foi interrompida a meio da ordem de trabalhos, quando deixou de estar reunido o quórum mínimo.

O cenário, e o resultado, repetem-se na Assembleia Magna seguinte, a 13 de Março. As estudantes tentam ler um comunicado a denunciar o processo de silenciamento, mas são interrompidas e impedidas pela MAM de o concluir.

Quatro meses depois de terem sido entregues mais de 1700 assinaturas a pedir a discussão do genocídio na Palestina no seio da comunidade estudantil, a AAC continua sem tomar qualquer posicionamento e sem permitir aos estudantes qualquer espaço de discussão digno da seriedade do tema.

Atrás dos detalhes técnicos, timings e infortúnios, a burocracia da AAC esconde a sua vontade de não tomar posição perante o genocídio em curso, num contraste evidente com a prontidão com que se posicionou face à invasão russa da Ucrânia. Há dois anos, um dia após os tanques russos cruzarem as fronteiras ucranianas, foi hasteada uma bandeira branca no edifício da AAC para manifestar “a sua solidariedade com todos os estudantes afectados pelo actual conflito”. Na altura, não foi sequer necessário realizar-se qualquer Magna.

O silêncio perante o silenciamento

Em Coimbra, quatro meses após o início deste grave ataque a um direito democrático dos estudantes, regista-se uma quase total ausência de posicionamentos de núcleos de estudantes, secções ou organismos autónomonos da AAC. As Repúblicas, grupos culturais e outros movimentos da cidade também guardam silêncio.

Nem mesmo os outros movimentos e organizações que apoiam a Palestina e têm presença na cidade se posicionam. Em alguns momentos, chegam a posicionar-se do lado de quem silencia – na Magna de 22 de Janeiro, por exemplo, cerca de duas dúzias de estudantes da Lista A, a única outra lista que se apresentou às eleições de Novembro, votaram ao lado da DG numa votação preliminar, ganha pela DG por apenas 20 votos.

As poucas manifestações de solidariedade chegam de outros grupos de estudantes e investigadores pela Palestina que, em muitos casos, também foram silenciados – o que se passa na AAC é apenas um dos casos mais gritantes de um padrão de silenciamento das vozes a favor da Palestina, de norte a sul.

Ocupação ecocida e genocida

Na madrugada de 26 de Janeiro, uma dúzia de estudantes do movimento Fim ao Fóssil – Coimbra pintaram a bandeira da Palestina num dos lances das Escadas Monumentais e afixaram uma faixa onde se lia “Fim à Ocupação Ecocida e Genocida”. Em comunicado, os estudantes afirmam que a acção tinha por objectivo mostrar solidariedade com o povo palestiniano e alertar para o “programa ecocida, apoiado por empresas britânicas e norte-americanas, para a extracção de gás ao largo da costa de Gaza”.

Pelas 8h da manhã, a polícia encontrava-se já no local e, 15 minutos mais tarde, chegou a Protecção Civil para apagar a bandeira da Palestina com uma mangueira de alta pressão. Um dos agentes presentes explicou que a Protecção Civil tinha sido chamada “por causa de possíveis riscos para a segurança dos transeuntes”, pois a tinta, que ainda não havia secado, estaria escorregadia. A faixa, no entanto, foi também retirada.

Silenciamento, de Norte a Sul

Em Coimbra, mas também em Lisboa e noutras cidades, os cartazes colados por movimentos ou pessoas solidárias com a Palestina são repetidamente rasgados. Os protestos e outras iniciativas não recebem quase nenhum, ou nenhum, destaque nos grandes media, a embaixada israelita exerce pressão sobre redacções de grandes jornais, e as tentativas de marcar posicionamento relativamente ao genocídio em curso são, em muitos casos, silenciadas.

A 13 de Novembro, estudantes afixaram na fachada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa duas faixas onde se lia “Fim ao Genocídio” e “Palestina Livre”, prontamente retiraradas e apreendidas pela faculdade por “terem um cunho demasiado político para o espaço”. Já o facto de, três dias depois, o Chega ter levado a cabo uma “acção política” nessa mesma faculdade, segundo um comunicado do Núcleo de Estudantes de Antropologia, “não foi um problema” para a direcção.

Outro caso de silenciamento teve lugar a 12 de Dezembro, na Universidade do Minho, quando a reitoria impediu os estudantes de desenrolar “uma lista com milhares de nomes de pessoas [mortas por Israel em Gaza]” pelas escadas do Campus de Gualtar por considerar que “isso iria prejudicar o funcionamento da universidade”. Como afirmaram os estudantes em reacção à proibição, “há muita coisa que prejudica o funcionamento das universidades, em especial quando são bombardeadas como as da Faixa de Gaza”.

6 meses de genocídio, 50 anos do 25 de Abril

Este padrão que se vem abatendo sobre quem tenta construir a solidariedade com a Palestina, e apoiar o direito à auto-determinação do povo palestiniano, é preocupante. Os media não reportam os casos de silenciamento, já para não falar da cobertura jornalística do genocídio em curso, e tanto o silenciamento como o próprio genocídio estiveram totalmente ausentes da campanha eleitoral.

No mês em que se completam 50 anos do 25 de Abril e 6 meses de genocídio em Gaza, não só o silenciamento das vozes que pedem o fim deste genocídio, mas também o silêncio da sociedade civil face a estes ataques à liberdade de expressão e organização, devem fazer-nos reflectir sobre o estado da nossa “democracia”.

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