Entrevista

Sociedade

Flávio Almada: “Não vai haver deus algum, tudo depende da ação organizada e consequente” 

Vive na Cova da Moura e é um dos membros do Vida Justa, movimento que agita os bairros na luta por melhores condições de vida. Depois da manifestação que percorreu as ruas de Lisboa até à Assembleia da República, Flávio Almada recorda que é a luta que dá dignidade a quem trabalha e que o combate à extrema-direita se faz com medidas concretas que resolvam os problemas da população.

Através do trabalho político que têm feito nos bairros, sentes que a situação social está muito difícil?

A situação está insuportável. Não quero parecer alarmante mas como é que tens um salário e não consegues alugar um T2 na Amadora? Além disso, é preciso sublinhar que nestes territórios de que estamos a falar muitas vezes a única face do Estado que existe é a polícia. Serviços públicos? É preciso que haja fortalecimento, não só do financiamento mas de coisas concretas. A situação está difícil para a maioria, mas a minoria lá em cima está numa boa. O inferno está aqui para nós, os trabalhadores. A situação torna-se insuportável, em que quase te retiram o direito a sonhar. Pergunta a qualquer um que tenha 18 anos, com o mínimo de cabeça, sobre o que estará a fazer daqui a cinco ou dez anos. Vão dizer que querem sair daqui ou que não sabem.

Porquê um movimento dirigido especificamente para os bairros?

Não é a primeira vez que isso acontece. Eu vim de um movimento, a Plataforma Gueto, que era direcionado para os bairros. Sempre houve movimentos direcionados para os bairros porque os bairros são a maioria mas não têm representação em nada e é necessário que haja sujeitos políticos que ponham a periferia no centro. Não só como geografia mas também nas relações de poder e de exploração. E é importante porque, por exemplo, tens pessoas com três ou quatro empregos. Em termos de transporte, é só ver de manhã a linha de Sintra ou mesmo partes da linha de Cascais e como as pessoas vão amontoadas nos comboios. E, ao longo dos anos, com o neoliberalismo, houve cortes, cortes, cortes, até nas carruagens. Primeiro, o número de comboios a passar foi reduzido, depois as carruagens foram reduzidas. As ligações entre os bairros e o centro da cidade, os horários, funcionam mais ou menos como “vais trabalhar, depois voltas, não tens direito ao lazer”. Se queres ir ao centro ao domingo estás tramado. 

E em termos de emprego, grande parte do pessoal trabalha na limpeza, a profissão em que é mais fácil de despedir. Há a questão, por exemplo, da construção civil e da restauração. Os bairros passaram a ser dormitórios que andam a servir o centro, não é? Servem o centro e depois chega a parte em que não têm sossego. Quando vão de manhã são revistados pela polícia, têm que passar várias fronteiras para entrar dentro da cidade. Mas isso porque vão trabalhar, agora para se divertirem não é permitido. 

E depois, à noite, tens a polícia porque há a classificação de Zonas Urbanas Sensíveis, que quando a crise se agudiza o terrorismo da polícia aumenta como forma até de ocupar a cabeça da malta para não resistir e colocar uma cultura de medo e acantonamento. É bom que a agenda [dos bairros] seja discutida a partir dos seus próprios termos, da sua própria realidade e também com sujeitos que não só, mas são em grande parte, desse contexto, e que habitam e vivem esse contexto. Não é só uma questão, por exemplo, de experiência, é uma questão política que tem uma agenda que facilita, que defende a maioria explorada e oprimida aqui da periferia.

Sentes que é mais difícil mobilizar os imigrantes e que a Vida Justa pode ajudar a criar uma prática de luta para o futuro em torno deste setor da população?

Sim, eu acredito nisso porque é muito difícil quando estás em condições de vulnerabilidade, tanto em termos jurídicos como materiais. Por exemplo, a malta tem longas horas de trabalho precário. Pensas três vezes porque se não tiveres documentação podes ser deportado, ou se a polícia te der uma paulada como é que te vais defender? Então o Vida Justa nesse aspeto acaba por ancorar e criar um espaço de luta e de prática. 

O que nós pretendemos mesmo é que a nossa malta perceba que ninguém vai fazer nada sozinho e que a coisa é mesmo coletiva, que coletivamente somos fortes. Essa onda do salve-se quem puder não é nossa, não nos beneficia e a única coisa que nos fortalece é quando estamos unidos. A questão da unidade é uma unidade na questão da pauta e na questão dos interesses. Interesses da malta explorada, da malta oprimida, racializada, brutalizada, sim – essa unidade, certo. É óbvio que temos muito trabalho a fazer, precisamos que mais pessoas adiram, de uma forma mais consistente e sejam militantes.

E achas que a bestialização do outro é a pedra-chave para a manutenção de mão-de-obra barata em Portugal?

A criminalização e a bestialização funcionam como forma de extrair a mais-valia e, ao mesmo tempo, pode ser usada como uma forma de baixar salários numa desvalorização completa do trabalho. 

Os trabalhadores da periferia, no fundo, são quase todos os trabalhadores deste país, os que não usufruem de praticamente nada do que produzem. Sentem boa recetividade quando contactam quem trabalha?

Identificam-se mas só identificar não é suficiente, têm que participar. E essa questão de não usufruir… O que é que fez a Europa ser aquilo que é? Se formos a ver, foi o terceiro mundo que construiu a Europa. O que é que seria de Lyon, de Paris, de Liverpool, de Manchester, dos caminhos-de-ferro da Inglaterra sem escravatura? O que é que seria de bancos como o Barclays, o que é que seria da Chrysler, o que é que seria mesmo da própria Revolução Francesa, a burguesia não teria arrogância se não fosse a acumulação feita através da venda de escravos ligados ao Haiti. E mesmo quando milhões de trabalhadores abandonaram os seus países durante a colonização para libertar a Europa do fascismo, a Europa nunca perdoou nem a Rússia nem África por libertá-la do fascismo. 

E essa questão dos trabalhadores aqui da periferia, numa escala maior estamos a ver isso. A malta constrói hospitais em que não entra, constrói casas em que não vai morar. É só ver as rendas. É uma forma de colonização do espaço. À medida que a cidade se expande, empurra-se essa massa de trabalhadores para a periferia. Então o que nós devemos fazer não é só contemplar, é participar na organização do Vida Justa e militar para quebrar isso porque nós só vamos conseguir isso através da luta. Não vai haver deus algum, nenhum milagre, tudo depende da nossa ação organizada e consequente.

Achas que a luta dignifica os trabalhadores da periferia?

A luta dá dignidade, a luta dá vida, sem luta não há vida. Mesmo em termos do físico. Todo o corpo está em movimento. Então, o facto de estares na luta dá-te uma autoestima no sentido de te colocares numa posição em que acabas por ser vítima mas não te pores numa posição de vítima. A luta é o único que há para dar orgulho em ser trabalhador. “Eu sou trabalhador com orgulho, vivo do meu trabalho, eu não sou um explorador, um patrão, eu sou um trabalhador”. Por exemplo, os [Black] Panters conseguiram dar autoestima, aquela população tinha orgulho em ser Panter. E nós vamos ser obrigados a lutar senão não conseguimos viver aqui com este salário, com esta renda. Ou lutamos por melhores condições, ou morremos. 

Lutar é uma questão de sobrevivência?

É uma questão de sobrevivência. E é uma questão também de dignidade e de participar na história, não ser mero espectador, ficar a ver as coisas a acontecer. A única forma que há é organizar, participar na luta e agir.

Temos um governo que se diz de esquerda com maioria absoluta que promove políticas de direita. Como é que olhas para esta contradição?

É como um lobo com pele de cordeiro. Vamos ver o que é que o Partido Socialista fez aqui na Amadora? O Partido Socialista aqui na Amadora era quem expulsava as pessoas e deixava-as sem casa. Onde é que a gente já viu um Partido Socialista fazer uma coisa dessas, mandar as pessoas voltar para a sua terra? Há quanto tempo é que o governo anda a falar de mais habitação? Uma parte das comunidades foi completamente dizimada, ao serviço de quem? Eu acredito no povo, na massa trabalhadora, na força popular.

Essa é a solução para evitar o crescimento exponencial da extrema-direita?

A única forma de combater a extrema-direita não é discutir, é criar medidas concretas para a resolução de problemas materiais. Não há que ter debate com esses gajos. Mas se o Partido Socialista quisesse mesmo combater a extrema-direita as medidas seriam concretas em termos materiais de dar condições dignas às pessoas que trabalham porque as pessoas não estão a pedir esmola, as pessoas estão a pedir que lhes devolvam aquilo que lhes pertence porque quem produz a riqueza somos nós, somos nós que trabalhamos. Estamos a pedir uma coisa que é nossa, não estamos a pedir por favor. Basicamente é com medidas concretas em termos de salário que se resolvem muitos problemas. Casas para viver, casas para morar, a questão do aquecimento das casas, a questão das pensões… A questão do Serviço Nacional de Saúde, a questão dos transportes, a questão da cultura. E o fracasso do vazio programático, aqui em termos de resolução de problemas concretos, é que pavimenta o caminho para a extrema-direita. 

De que forma é que se pode aspirar, neste caso em Portugal, a um país mais democrático em que todas estas realidades, toda esta periferia subrepresentada, tenha direito a um futuro?

Da forma como este sistema está montado, tem que cair. Tinha que haver uma reestruturação total até em termos da forma como se participa na política, de como se fazem as coisas. Tinham de passar a ser de baixo para cima, não de cima para baixo.

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