Cultura

Teatro

O vazio e as relações de poder numa “Terra de Ninguém”: Pinter nos Artistas Unidos

A encenação é de Pedro Carraca, actor e encenador habituado aos textos do inglês Harold Pinter na “casa” Artistas Unidos.

A peça está em cena no Teatro da Politécnica, até 15 de Outubro.

Estamos numa divisão ampla, numa tarde que se prolonga até à manhã seguinte. Hirst (Américo Silva), poeta e dono da casa, está com outro poeta, Spooner (João Meireles). Parece que se acabaram de conhecer num bar.
Spooner tem alguma veneração por aquele intelectual de sucesso, que tem dois criados: Briggs (António Simão), nos seus quarenta anos, que deve há muito servir Hirst, e Foster (João Pedro Mamede), jovem na casa dos trinta. Ambos estranham o outro homem na casa do patrão, e a hostilidade transforma-se em ironia. Este é um território masculino, onde as mulheres são recordadas, e talvez afastadas do presente destes homens.
À medida que as conversas decorrem, percebemos que aquela sala é uma terra de ninguém, no sentido metafórico e espacial. Temos como cenário um bar incrustado na parede, muitas e diversas garrafas de bebida, copos e um telefone; à direita, a poltrona do dono e patrão, Hirst, e do outro lado, também isolada, uma cadeira. O que junta o quarteto é o isolamento a que a dramaturgia apela. Estes homens não conversam sobre poesia ou arte e geral – e todos, à excepção de Briggs, são poetas. Bebem muito, as memórias adensam-se tanto que as que trazem felicidade são esquecidas com mais álcool. Simultaneamente, é o estado ébrio que os faz desabafar e ir mais fundo no passado. Para atrás, ficaram as relações com mulheres e amantes; afinal Spooner e Hirst são velhos conhecidos, e este tinha um relacionamento com a mulher do amigo, que o amigo sabia existir.

A corrida que se esqueceram de correr


Trata-se de uma sala despojada de afectos, em que as palavras são irónicas armas de arremesso para aliviar a falta a esperança. É desse limbo em que a humanidade por vezes insiste em permanecer que falam muitos dos trabalhos do prémio Nobel (2005) Harold Pinter.
“Terra de Ninguém” é aquilo que permanece, não muda; o lugar sem tempo porque igualmente despojado de sonho e desejo. Talvez o mais jovem, Foster, que veio de Bali para ser criado de Hirst, deseje e sonhe ainda escrever poesia, apesar da desilusão com o intelectual alcoólico que agora é seu patrão… Talvez Spooner se venha a entusiasmar com a revista literária que começou a dirigir…. Hirst, o que tinha mais razões para continuar a ser dono da sua vida, é o mais afastado da existência – parado e desistente que está: “Esta noite… meu amigo… encontra-me na última volta de uma corrida… que há muito me esqueci de correr.” A corrida é a capacidade de ir além através do sonho. Por isso o que lhe resta é perguntar ao poeta marginal Spooner se também quer ficar ali como criado a servi-lo. A ilusão de poder, autoridade sobre os outros, subordinados, que, no fundo, não mais são que aliados de um purgatório. Mas esses, parecem ainda conseguir evadir-se daquela casa, daquela sala. Hirst está esquecido, perdido, sem se conseguir reencontrar. E voltar a correr para viver.

Ilusão de felicidade atrás das relações de poder

Escrita em 1974 e estreada um ano depois, “Terra de Ninguém” tem como ponto-de- partida a pergunta que surgiu a Pinter quando viajava sozinho num táxi vindo de um jantar solitário: “As it is?”/”Como isto é?” O próprio nunca soube explicar sobre o que é o seu texto: como isto é a vida, o mundo, a desilusão, o amor? Não há dúvida que retrata a densa solidão e angústia de quatro homens perdidos numa terra onde nada muda pela incapacidade e aprisionamento, que acaba por uni-lo.
O tom pessimista é trabalhado com a ironia do discurso das personagens, que por vezes toca o absurdo – uma forma a que recorrem por causa do sofrimento e do peso da existência nas fases da vida em que estão. Hirst, já no fim, diz que não vai mudar mais de assunto; Foster logo depois tem de lhe recordar o que acabou de dizer, explicando isso é como estar sempre no inverno, num lugar onde a primavera e o verão não mais virão. No fundo, o estado de escuridão e semi-morte em os quatro se encontram. A falsa solução de ter mais um criado lembra a relação de poder estabelecida em “O Criado” (1963), filme que Pinter escreveu para Joseph Losey. A única via ilusória para terem afecto e apego mínimos parece ser dentro das relações de poder: entre sublimação, submissão e uma autoridade despojada de sentido. Só porque alguma coisa tem de acontecer. Mesmo que nada mude e permaneça o vazio, e o mundo lá fora continue a acontecer: “Em toda a parte as pessoas estão a mudar de roupa para o jantar. E nós aconchegados, de persianas corridas, passando a perna ao mundo.” (Hirst).

Artigos Relacionados