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Esta cidade não é para lisboetas

Por lisboetas entenda-se, como documentou Sérgio Tréfaut, todos aqueles que vivem e trabalham em Lisboa, independentemente da sua origem, sexo, pronúncia ou tom de pele. Os números dos últimos anos mostram que há um êxodo da população de certas zonas da cidade para outros concelhos. Órfãos de políticas que sirvam de tampão ao processo de financeirização de Lisboa, os munícipes da capital são empurrados para a periferia em nome de um modelo de cidade pouco democrático e participativo.

Nas últimas eleições autárquicas, o PS conquistou a Câmara Municipal de Lisboa pela primeira vez com Fernando Medina. Contudo, para além das políticas levadas a cabo, a saída de António Costa a meio do mandato e a sua substituição pelo atual presidente da autarquia levou a uma perda de 10 mil votos e três vereadores. 

Com a perda da maioria absoluta, o PS viu-se obrigado a encontrar uma solução de estabilidade através de um acordo com o BE que voltava a eleger um vereador. Desde 2005 que isso não acontecia, precisamente depois de dar apoio ao PS com o independente José Sá Fernandes, que acabou por perder a confiança política do BE. Se se pensava que com o vereador Ricardo Robles, membro do partido, o mandato ia decorrer com menos turbulência, aconteceu o contrário. Menos de um ano depois da tomada de posse, Ricardo Robles renunciava ao mandato e era substituído por Manuel Grilo depois de se tornar público que havia adquirido, em 2014, um prédio em Alfama que comprou com a irmã por 347 mil euros para o vender por 5,7 milhões de euros em pleno processo de gentrificação da cidade. Protagonista de várias polémicas, o sucessor de Ricardo Robles, apesar do “balanço positivo” que o BE diz fazer do mandato, não é o candidato à Câmara Municipal. O partido decidiu apresentar antes, a sua deputada na Assembleia da República, Beatriz Gomes Dias.

Já o PSD, ainda na ressaca da saída de Pedro Passos Coelho, decidiu romper a coligação com o CDS-PP e candidatou Teresa Leal Coelho. O resultado foi desastroso, com 11,22%, elegendo dois vereadores. O CDS-PP apostou na então líder do partido, Assunção Cristas, que chegou aos 20,59% e conseguiu quatro eleitos na Câmara Municipal. Quatro anos depois, PSD e CDS-PP, entre outros partidos de direita, chegaram a acordo para concorrerem em coligação novamente, desta vez com Carlos Moedas, importante figura do governo de Passos Coelho e Paulo Portas.

Por sua vez, a CDU, que em 2017 subiu de um para dois vereadores, volta a apostar em João Ferreira para a Câmara Municipal. Fora do acordo com o PS, a coligação entre comunistas, verdes e independentes assumiu o papel exclusivo de oposição à esquerda.

O desespero de não conseguir casa

Quando a maioria PSD e CDS-PP aprovou a lei que ficou conhecida com o nome de Assunção Cristas, durante o governo liderado por Passos Coelho e Paulo Portas, abriu uma tempestade que ainda hoje não terminou. O aumento explosivo das rendas, do alojamento local e dos despejos forçou milhares de pessoas a abandonar as suas casas e a procurar alternativas nos arredores de Lisboa provocando um efeito em cadeia com o consequente aumento dos preços dos imóveis também nos subúrbios. A liberalização do mercado de arrendamento e a aprovação dos vistos gold foram instrumentos que contribuíram para a estratégia apoiada pela troika de turistificar ainda mais a economia nacional tendo Lisboa como um dos seus eixos. Contudo, com o apoio dos partidos à sua esquerda, o atual governo podia ter revogado a lei e não o fez. 

Os censos realizados este ano mostram as consequências das decisões políticas tomadas em São Bento e na Praça do Município. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, Misericórdia (-26,1%), Santa Maria Maior (-22%), São Vicente (-9,4%), Ajuda (-8,4%) e Santo António (-6,4%) foram as freguesias que mais população perderam em Lisboa. Apesar das promessas do PS e BE de criar mais habitação na cidade, a capital perdeu 1,4% dos seus habitantes na última década. Apesar dos vários programas de habitação acessível aprovados, algumas delas da autoria da CDU, a lentidão na sua implementação não conseguiu competir com o forte impacto da especulação imobiliária na cidade.

Numa das últimas sondagens realizadas sobre a perceção dos lisboetas sobre quais devem ser as prioridades do próximo presidente eleito, os resultados foram evidentes. Atrás da ação social e apoio à pobreza (18%), está a habitação e o emprego com 15%.

Urbanismo em contra mão

Tanto António Costa como Fernando Medina conviveram bem com esta estratégia à frente da autarquia e apostaram em Manuel Salgado como protagonista deste processo de financeirização da cidade entre 2007 e 2019, quando renunciou ao mandato como vereador. 

Um dos exemplos é a aprovação do Hospital CUF Tejo em Alcântara que valeu a Manuel Salgado um inquérito judicial acabando como arguido. 

Mas as polémicas foram muitas nestes quatro anos. A gestão de Fernando Medina apresentou a participação da população como uma alavanca das políticas a executar. Foi quase sempre o oposto. Foram muitos os casos em que foi o protesto dos munícipes que fez recuar projetos da autarquia.

Em 2019, um fundo imobiliário alemão queria construir um prédio de 60 metros junto à Avenida Almirante Reis. Segundo noticiava, então, o Diário de Notícias, uma parte do projeto estava já aprovado pelo departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa e ameaçava tornar-se num dos edifícios mais altos da capital. Foi a indignação da população e a polémica que gerou que obrigou a autarquia a baixar a altura do edifício.

Outro dos casos que deu que falar foi a rejeição popular às mudanças previstas para o Martim Moniz. A Câmara Municipal viu-se obrigada a recuar.

O mesmo não aconteceu no tipo de reabilitação projetado para a Praça do Rossio num processo especulativo que forçou a saída da Pastelaria Suíça e da Casa da Sorte, entre outros, pelos novos proprietários. Aprovado com os votos contra do PCP, abstenção do BE e votos favoráveis do PS, PSD e CDS, a vereadora da CDU, Ana Jara, apontou o dedo à autarquia e afirmou que “o melhor e mais rentável uso é a máxima que gere investimento imobiliário e que se confunde com as políticas urbanas para Lisboa”.

Fruto das políticas locais, também na Avenida Almirante Reis, uma das mais populares e centrais artérias da cidade de Lisboa, vai desaparecer para sempre um dos seus espaços emblemáticos. A antiga e histórica Garagem Liz vai ser substituída por um hipermercado Continente. A proposta da empresa foi aprovada em reunião de câmara com os votos favoráveis do PS, PSD e CDS-PP e contra do PCP e BE.

O imóvel, com uma área total de 2.546 metros quadrados distribuída por dois andares, vai albergar o hipermercado e o estacionamento, uma proposta que recebeu opiniões negativas. Foi o caso do arquiteto Tiago Mota Saraiva que contestou o plano para aquele espaço. “Isto contraria a ideia da cidade de 15 minutos. A cidade deve ser determinada por aquilo que falta e num raio de 100 metros há várias superfícies parecidas com aquela”, explicou à Voz do Operário. “Estamos a criar uma densidade de supermercados que não serve o interesse público”.

Defende também que tendo havido alteração de uso “fazia todo o sentido que fosse um espaço de cultura”, recordando que ali já esteve um coliseu. Outro dos problemas apontados é o do estacionamento. “Não podes pensar em ciclovias e depois fazes um parque estacionamento e um supermercado”.

Educação e Direitos Sociais sob crítica

No campo da ação social, o pelouro gerido pelo vereador do BE foi muito criticado. Em tempo de pandemia, os casos sucederam-se. Para o antigo vereador João Afonso, ex-titular da pasta, há uma aposta continuada em soluções de exceção, em vez da instalação destas pessoas em casas ou quartos, o que seria muito mais próximo de uma “vida normal”. Foi assim que criticou as opções políticas do BE na autarquia para pessoas em situação de sem abrigo num debate com Manuel Grilo na TSF. Para João Afonso, a resposta dada no contexto do estado de emergência, recorrendo a equipamentos não adequados a fins habitacionais, deixou de ser aceitável. A proposta do BE para a instalação de um centro de emergência no antigo quartel de Santa Bárbara, com um custo de quase um milhão de euros numa solução provisória de alojamento massificado, não era aceitável para o antigo vereador.

Mas a gestão da crise pandémica pelo vereador eleito pelo BE também foi criticada no tratamento que deu aos refugiados. Quando se descobriram cem refugiados contaminados num hostel em Arroios, Manuel Grilo afirmou num comunicado que o seu pelouro “não tinha conhecimento”, apontando o dedo à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), ao Ministério da Administração Interna e ao SEF. O Conselho Português para os Refugiados (CPR) afirma que esta situação “era do conhecimento das várias entidades envolvidas no procedimento de asilo” e a presidente da Junta de Freguesia de Arroios recordou a denúncia do deputado municipal eleito pela lista independente Cidadãos por Lisboa, Miguel Graça, que, em 28 de abril, numa sessão da Assembleia Municipal, lembrou que entre as competências do pelouro está “o acolhimento e integração de migrantes e refugiados”. De acordo com várias associações, esta situação era já do conhecimento da autarquia em dezembro de 2019.

O mesmo deputado garantiu que o anterior executivo municipal tinha apresentado, em 2017, uma candidatura a um financiamento europeu para ampliar o Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados no Lumiar e que este teria sido aprovado com acesso a uma verba de um milhão de euros. Miguel Graça sustentou que “nada foi feito” e que o dinheiro teria de ser devolvido, “uma vez que o centro não foi ampliado e as condições não melhoraram”.

Outra das críticas apontadas, neste caso pela CDU, foi a entrega a privados da gestão dos refeitórios das escolas em 2020, uma proposta aprovada, que teve a abstenção dos vereadores da CDU. Para João Ferreira e Ana Jara, a solução passava por defender a gestão pública e a confeção local das refeições.

Cultura

No âmbito da política cultural, outra das decisões que gerou polémica foi a entrega à gestão privada do Teatro Maria Matos, onde se fez um investimento público continuado na década anterior e onde se realizaram obras de requalificação do espaço. Sindicato e associações mobilizaram-se contra a decisão da autarquia, exigindo maior debate público e maior investimento público na cultura.

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