Mário Castelhano salientou-se como um dos mais destacados sindicalistas portugueses na década de 1920, primeiro como dirigente da federação de trabalhadores ferroviários e depois como secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e diretor do seu jornal diário, A Batalha.
Veio a ditadura, e, a partir de 1927, Castelhano viveu sempre clandestino, deportado ou preso. Até morrer no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, a 12 de Outubro de 1940 – quando apenas tinha 44 anos de idade.
Foi um dos principais opositores assassinados pela ditadura de Salazar, a par do general Humberto Delgado e de Bento Gonçalves, secretário-geral do Partido Comunista Português.
Campo de concentração?
No 9º volume do Dicionário de História de Portugal, coordenado por António Barreto e Maria Filomena Mónica, escolheu-se designar o Tarrafal pelo nome oficial que a ditadura lhe atribuiu: “colónia penal”. E, num tom de suposta objetividade académica, questiona-se a sua designação de “campo de concentração” como sendo coisa da oposição e da “propaganda anti-regime”, com o intento de “tirar partido” da “conotação com os campos de extermínio nazis, apesar da desproporção abismal”.
Foi Salazar quem disse!
Mas… foi o próprio governo de Salazar quem começou por dizer “campo de concentração”!
Desde logo, em janeiro de 1934, poucos dias depois de prender Mário Castelhano e de reprimir a revolta operária contra a dissolução dos sindicatos livres: numa “nota oficiosa”, o governo assume abertamente a sua intenção de deportar os organizadores da revolta para um “campo de concentração”, o qual aventou então localizar no sul de Angola. Era já o anúncio do que viria a concretizar dois anos depois em Cabo Verde, no Tarrafal. Essa “nota oficiosa” está publicada, por exemplo, no Diário de Lisboa, 20/01/1934, página 8, e no Diário da Manhã, 20/01/1934, pág. 1.
Mesmo no decreto-lei em que estipula a criação da “colónia penal para presos políticos” no Tarrafal, é o próprio governo de Salazar quem volta a falar em “campo de concentração” e quem dá a entender que era disso que se tratava. Está publicado no Diário do Governo, 23/04/1936, pág. 446. Trata-se do artigo 11º do Decreto-Lei nº 26.539: “a colónia penal criada por este decreto poderá instalar-se provisoriamente” utilizando os meios “destinados ao campo de concentração da Ilha de S. Nicolau” (um projeto anterior, situado também em Cabo Verde).
Antes da 2ª Guerra Mundial
Em 1936 ainda não existiam os “campos de extermínio” nazis, equipados com câmaras de gás para assassinar populações numa escala industrial. Esses só surgiram em 1941/42, no contexto da 2ª Guerra Mundial.
Na criação do Tarrafal, a referência nazi da ditadura de Salazar foi uma coisa diferente: o “campo de concentração” para presos políticos criado pelo governo de Adolf Hitler logo em 1933, nos arredores da cidade de Dachau, na região da Baviera.
No dito Dicionário de História de Portugal confundiram-se afinal coisas diferentes e que é fundamental distinguir. Assim defende, por exemplo, uma instituição especializada na matéria como a Biblioteca Wiener do Holocausto, sediada em Londres. Na página de internet sobre o holocausto que esta instituição mantém, define-se “campo de concentração” como um “local onde pessoas são concentradas e aprisionadas sem julgamento”, sendo “usualmente exploradas como mão de obra e submetidas a duras condições”, com “desprezo pelas suas vidas e pela sua saúde”. Para os nazis, foi uma forma de “conter” opositores políticos, como militantes comunistas (theholocaustexplained.org).
Tarrafal
O Tarrafal corresponde exatamente a esta definição de “campo de concentração”. E é o mesmo Dicionário de História de Portugal que assim o descreve.
Aí se diz que foi “característico” do Tarrafal o “processo utilizado para executar adversários do regime”, com o mesmo “método, por sinal utilizado em grande escala nos campos alemães”, que “era o da chamada ‘morte natural’ (também assim lhe chamavam os nazis)”. Consistia na “falta de condições de salubridade e higiene, na subnutrição, na quase inexistência de medicamentos, na recusa de assistência médica e na exposição deliberada ao mosquito da malária”.
Feita esta referência a uma das doenças tropicais que ali eram particularmente propícias, acrescente-se ter sido o próprio governo de Salazar quem, no referido decreto de 1936, assumiu que escolheu o Tarrafal “depois de um reconhecimento cuidadosamente feito por técnicos a diferentes ilhas do arquipélago de Cabo Verde”, chegando à “conclusão” de que aquele lugar era o que “reunia as condições necessárias”, nomeadamente “sob o ponto de vista higiénico”…
“Condenação à morte”
Mais descreve o dito Dicionário de História de Portugal que “acresciam o trabalho forçado, a tortura […] e os espancamentos”. E conclui que isto era “praticamente uma condenação à morte, ainda que aleatória na escolha das vítimas e consumada, com diluição de responsabilidades”.
Diz ainda que alguns dos diretores do Tarrafal “confessavam sem problemas a intenção de provocar mortes” e que um deles “terá estagiado em campos de concentração alemães e italianos”.
Parece afinal que isso de chamar “campo de concentração” ao Tarrafal tem muito fundamento.
Ali foi assassinado Mário Castelhano, marido de uma professora d’A Voz do Operário e sobre quem fica muito por dizer, para um próximo artigo.