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Não somos reféns

No final do mês de Maio, em comunicado ao Governo, a Associação Portuguesa de Empresas Cinematográficas reivindicou o adiamento da abertura dos cinemas comerciais, integradas no programa de desconfinamento apresentado para os vários sectores da vida social.

Ruby, de Mariana Gaivão, 2019

A possibilidade de abertura das salas no início de Junho foi descrita como “despropositada e irrealista” já que a APEC entende que “a abertura das salas terá que ocorrer em data em que se preveja a existência a curto prazo de filmes que potencialmente sejam sucessos de bilheteira, de forma a que o esforço e custos de reabertura não sejam imediatamente delapidados pela falta de filmes que agarrem grandes audiências.”. Reféns assumidos (sobretudo) da indústria estadunidense, a principal detentora e dinamizadora das salas de cinema do país – a NOS cinemas – acrescenta sem pudor que “reabrir as salas sem novos filmes equivale a ter um supermercado com as prateleiras vazias ou cheias de produtos cujo prazo de validade já passou”.

A postura assumida pela APEC e pela NOS cinemas ilumina uma urgente necessidade de reflexão acerca do espaço que se cria para a já fustigada pelas circunstâncias, indústria de cinema nacional.

Considerando a título de exemplo, que em 2019 o Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) aponta que tenham sido produzidos 77 filmes, 40 dos quais longas-metragens, não se afigura duvidoso que se afirmem as salas como desprovidas de conteúdos de interesse para exibição?

As minas presentes neste caminho parecem evidentes e difíceis de serem evitadas pelo pé dos que o trilham: permeia-se a produção nacional de cinema de uma terrível carga burocrática, inserida num contexto de difícil acesso pela falta de recursos o que conduz inevitavelmente à produção de poucos filmes (quase todos subfinanciados), produzidos por poucas pessoas, e com poucas oportunidades de exibição.

E é neste contexto que assistimos alegremente ao anúncio de estreia, a 9 de Julho, de uma junção de 3 curtas-metragens, de 3 realizadoras portuguesas.

Perante o panorama descrito é particularmente louvável a resistência de algumas salas de cinema que, justamente por se assumirem como resistentes têm consolidado a sua importância para quem ainda preza um amplo acesso à produção cinematográfica. Destacamos no Porto o Cinema Trindade e o Medeia no Teatro do Campo Alegre, e em Lisboa o Cinema Ideal e o Nimas. Com uma insistente negação do estatuto de reféns, estes cinemas garantem o seu público com propostas de cinema de todo o mundo.

E é neste contexto que assistimos alegremente ao anúncio de estreia, a 9 de Julho, de uma junção de 3 curtas-metragens, de 3 realizadoras portuguesas. A estreia está prevista no Cinema Trindade, no Cinema Ideal e em alguns cineclubes espalhados pela amplitude do território do país.

“Três Realizadoras Portuguesas” juntará em sala as propostas de Sofia Bost, Mariana Gaivão e Leonor Teles produzidas pela Pedra no Sapato e pela Primeira Idade, ambas produtoras nacionais.

“Dia de Festa”, realizado por Sofia Bost, mostra-nos uma mãe solteira da classe trabalhadora na margem sul do Tejo que, através da organização de uma modesta festa de aniversário para a sua filha, nos revela as duras arestas da exclusão e da vergonha da pobreza que continuam a marcar as interacções sociais das camadas mais desfavorecidas em Portugal.

“Ruby”, realizado por Mariana Gaivão abre uma curiosa porta para o universo real dos hippies britânicos que desde os anos 80 se refugiam no interior de Portugal das políticas neo-liberais impostas no Reino Unido nas últimas décadas. Através da história de duas adolescentes nascidas em Portugal, que procuram hoje o seu lugar no mundo, testemunhamos vidas que se norteiam por um quadro de valores alternativo daquele anunciado como único pela sociedade capitalista.

E por fim “Cães que Ladram aos Pássaros”, realizado por Leonor Teles, que nos expõe, através de alguns fragmentos da vida de uma família portuense numerosa, ao resultado do processo de gentrificação que tem ocorrido na cidade do Porto nos últimos anos, fruto do crescimento da especulação imobiliária e consequente esvaziamento do centro da cidade dos seus habitantes de origem. 

Neste corajoso esforço conjunto, que une com cumplicidade o trabalho das realizadoras, das produtoras, dos cinemas envolvidos, e do público que, estamos certos que preencherá as várias sessões de exibição, se reitera que ainda não somos totalmente reféns dos interesses que dizem ser nossos mas que na realidade não nos representam.

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