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Chile

Chile desperta num continente em ebulição

Às 10h10 daquela manhã de setembro, Salvador Allende já sabia que “de novo” se abririam “as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor”. Mais do que a metralhadora oferecida pelo “camarada Fidel” que, apesar de não ter disparado, empunhou para resistir ao golpe que lançou a primeira pedra dos perto de trinta anos de retrocesso e tortura de Pinochet, o último progressista que pisou o Palacio de La Moneada trocou as voltas à frase mais célebre de Castro naquela que foi a última emissão da Radio Magallanes. “A historia os julgará”, profetizou. Estávamos em 1973. Quase 50 anos depois, a 25 de outubro, uma multidão de cerca de um milhão e meio deu o corpo àquela que ficou conhecida como “a maior manifestação do Chile”.

Bomba relógio

Nem a mobilização que em 1988 levou centenas de milhares à capital contra a ditadura, que haveria de assombrar o país por mais dois anos, foi tão expressiva. Ao fim de duas semanas de protestos reprimidos à lei da bala e da violência gratuita dos polícias militares, que naquele país dão pelo nome de carabineros, o tal Homem livre desafiou o recolher obrigatório declarado pelo presidente Sebastián Piñera que, nos primeiros dias de outubro, classificou o país como um “verdadeiro oásis com uma democracia estável”, dias antes de declarar “guerra” ao próprio povo com milhares de soldados e tanques nas ruas. Pelo menos 20 chilenos morreram às mãos do Estado. Contam-se centenas de feridos e milhares de detidos. A preto e branco, as imagens dos corpos inanimados amontoados na rua, a detenção de jornalistas e as crianças pontapeadas e levadas à força nos blindados verde tropa não são muito diferentes dos recortes das décadas sanguinárias de Pinochet que, logo nos anos 70, não só negou o “direito de viver em paz” ao povo chileno como subscreveu alínea por alínea a receita do neoliberalismo desenhado por Milton Friedman na Escola de Chicago para entregar o público à iniciativa privada, numa operação que até aos dias de hoje vedou ao dólar o direito à saúde, educação e até à agua. De facto, apesar de ter começado num protesto contra o aumento das tarifas do metro, a mais recente onda de indignação chilena foi semeada lá atrás com o patrocínio dos fundos norte-americanos da Agência Central de Inteligência (CIA). Mesmo a privatização da Segurança Social que permite ao sistema financeiro jogar com o dinheiro das pensões nos mercados financeiros, há 40 anos, foi impulsionada por José Piñera, irmão do atual chefe de Estado do Chile.

Verdade inconveniente

Confrontado com as barricadas que tomaram de assalto a capital, Sebastián Piñera apressou-se a colocar os cargos dos ministros à disposição e à semelhança do que aconteceu no Equador – com Lenine Moreno a recuar nas medidas de austeridade que durante mais de uma semana deixaram o país à beira de uma guerra civil com o governo a mudar-se para Guayaquil pressionado pela revolta e pelas mobilizações em grande escala da Confederação das Nacionalidades Indígenas – travou o aumento dos transportes. A estratégia que quis retirar a legitimidade às denúncias do povo chileno teve eco na imprensa alinhada com os interesses dos mercados financeiros que, apesar de ter reduzido os protestos ao preço dos bilhetes esqueceu-se de mencionar que desde 2017 a tarifa aumentou 20 vezes. No Chile, uma viagem de ida e volta no transporte subterrâneo absorve 16% do salário médio da população que este ano não ultrapassa os 490 euros por mês. O país mais desigual dos 36 que compõe a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) vive essencialmente da exportação do cobre. Com a procura a diminuir, a economia encolheu com efeitos colaterais para a classe trabalhadora. Neste contexto, os 10% mais ricos têm rendimentos mais de 26 vezes superiores aos dos 10% mais pobres. Sindicatos e movimentos sociais não desarmam. Recusam os pedidos de desculpa de Piñera. Exigem que renuncie.

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