Entrevista

Música

Entrevista ao pianista e professor Miguel Borges Coelho

Aproveitando a sua passagem por Lisboa no passado mês de Abril, para uma Masterclass a alunos de piano na Academia de Música de Lisboa, conversámos com o magnífico pianista e professor Miguel Borges Coelho sobre o seu percurso académico e profissional, as suas memórias de infância do pós-25 de Abril, assim como a sua visão sobre o ensino da música em Portugal nos últimos 30 anos e o contexto político actual.

Estudaste piano no Porto, em Freiburg, e em Madrid. Como estudante, o que sentiste e observaste nestes diferentes contextos culturais, sociais e educativos?

Há uma questão importante de ter sido em épocas diferentes… eu era miúdo, tinha 19 anos, e o Porto era muito diferente do que é agora, em termos culturais e musicais. A Câmara de Matosinhos fazia uns ciclos muito bem montados, muito bem feitos, sempre com um programa muito bem pensado e coerente, eram ciclos que funcionavam; e às vezes havia uns concertos soltos, mas não havia nenhuma programação no Porto.

Estamos a falar de inícios dos anos 90…

Finais dos anos 80, princípio de 90, eu saí do Porto em 1990. Portanto, anos 80. Havia alguma actividade de músicos locais, às vezes havia umas coisas fora do habitual, mas havia pouca actividade cultural. Serralves estava a começar, ainda era só a casa antiga e a Casa da Música, nem pensar. Eu estudei no Conservatório, e não na Escola Superior [de Música e de Artes do Espectáculo, ESMAE], terminei o Conservatório no último ano em que o 9º ano era o fim do ensino da música. Portanto, o Conservatório era uma escola, como dizer… tinhas miúdos que seguiam até ao fim, mas havia uma grande variedade de níveis. Portanto, é difícil comparar geografias em tempos diferentes, porque em Freiburg, apesar de ser uma cidade pequena, é uma cidade com uma escola já com muitos anos, tinha um grupo de música contemporânea muito bom, muito conhecido, que ainda tem, uma orquestra barroca também muito conhecida, na altura tinha uma orquestra que não era grande coisa, depois mudou para lá a Orquestra Baden-Baden, portanto, apesar de ser uma cidade pequena tinha uma vida cultural forte, muito mais forte do que o Porto, sem comparação. Do ponto de vista da escola, para mim foi uma grande subida de nível, de exigência, passar do Porto para ali, mas também era passar de um Conservatório… A escola de Freiburg é uma escola muito aberta, tem um departamento de música contemporânea importante, a classe de percussão era fortíssima, era um ambiente arejado, comparando com o que era no Porto, que era uma mistura de superior e secundária. Portanto foi uma grande mudança para mim; lembro-me que quando cheguei à Alemanha comecei logo a estudar muito, e no Porto estudava pouco… e não foi sequer depois da primeira aula, foi mesmo antes, percebi logo que mudei de contexto e agora é a sério! Foram anos muito bons para mim em termos de formação, não só de piano, mas em geral. 

Depois em Madrid [Escuela Superior de Música Reina Sofía], era uma escola pensada como uma espécie de escola de elite na altura, ainda é, mas mais na altura, porque tinha poucos instrumentos, não era oficial, ficou oficial há pouco tempo, era-se admitido e ao fim de ano ou se continuava ou se era posto fora, não se passava de ano, não havia exames. Essa escola tinha um nível brutalmente alto; culturalmente não tanto, era menos interessante, cada um estava mais focado no seu instrumento. Foram anos muito exigentes do ponto de vista de trabalho pessoal, em Freiburg também, mas em Madrid foram mais violentos, os dois professores russos que trabalhavam juntos… o de Freiburg também era russo, mas usava mais a ironia do que a violência (risos) e era muito bom, mas não era violento, em Freiburg a coisa foi mais tranquila. Em Madrid era mais pesado e o nível era altíssimo. 

E foste para esses sítios por causa dos professores?

Foi sempre pelos professores, sim. Em Freiburg foi porque tinha conhecido o [Vitaly] Margulis, e em Madrid, conhecia o [Dmitri] Bashkirov de nome, claro, tinha um colega, que depois foi para Freiburg estudar com o Margulis, que tinha estudado com o Bashkirov e que dizia o melhor possível, avisando qual era o preço a pagar! E a Galina [Eguiazarova], que era assistente dele, era tão boa como ele, pelo menos. Foi professora do Radu Lupu e do [Arcadi] Volodos, foi ela que o descobriu e que o formou, quase. Portanto, foram experiências muito intensas, as duas. Se calhar, culturalmente mais enriquecedora a de Freiburg, as pessoas eram mais arejadas de cabeça, Madrid era uma coisa mais fechada em si, mas ambas foram muito importantes.

Nos anos 80 ainda tínhamos professores de instrumento em Conservatórios sem a 4ª classe…

Sim, o Director, por exemplo. O director do Conservatório do Porto, quando eu lá andei, era professor de sopros, não era de madeiras ou de metais, era de sopros no geral. Desde flauta a tuba dava tudo!

O que achas que influenciou mais a mudança do ensino da música em Portugal, nestas últimas décadas?

Acho que foram as escolas profissionais, primeiro; as escolas superiores tiveram também muito importância, apesar de terem sido muito mal recebidas, porque foi uma violência. Implicou que os professores do Conservatório, que eram professores do ensino secundário e superior, de repente perdessem um, baixaram de estatuto, mas não houve só isso, a parte mais pesada da coisa foi que os diplomas do Conservatório deixaram de ser válidos, o que é quase inacreditável. O meu diploma só é válido, porque… até é uma coisa um bocado extravagante, porque eu tinha o diploma do Conservatório que me permitiu entrar em Freiburg num Mestrado com 20 anos, o que não era possível, na Alemanha, entrar num Mestrado com essa idade, mas como eu tinha o diploma traduzido e oficial aceitaram, (eles são muito pouco burocráticos nesse sentido, muito menos do que nós), mas esse diploma em Portugal não me teria valido para nada. Depois, com o diploma da Alemanha, que era de Mestrado, fui reconhecê-lo à Universidade Nova e só mo reconheceram como Licenciatura, o que na verdade me deu jeito, porque senão não tinha Licenciatura (risos). Portanto, nesse sentido, a reforma foi muito mal recebida, e mal feita, porque diz-se às pessoas agora é assim e o que está para trás não vale. É absurdo. Até porque os professores que fundaram as escolas superiores era isso que tinham. Ora, podiam ser professores lá, mas se fossem para o ensino secundário não teriam habilitação própria para dar aulas, estavam todos em situação precária a partir daí. E isso durou muito tempo, porque quando cheguei ao Conservatório de Lisboa [1997] a situação era essa. Mas o que é que eu acho que melhorou o panorama? As escolas profissionais tiveram muita importância porque mudaram muito o ensino nos níveis anteriores ao superior, e deram muito boas condições. Houve uma combinação de duas coisas: primeiro o ensino integrado, que é uma grande vantagem; depois, particularmente nas escolas do Norte, que foram as que apareceram na altura, apanharam a criação, muito pouco tempo antes, da Orquestra Régie Sinfonia do Porto, que era uma orquestra com um orçamento descomunal, uma coisa completamente fora de tudo, e vieram músicos muito bons para aí por causa disso. Ao fim de um ano esperava-se que os privados entrassem, mas não entraram, foi preciso refundar, fez-.se um downgrade completo da orquestra, mas muitos músicos que estavam na orquestra, as escolas profissionais abriram nessa altura, foram convidados para ficarem a dar aulas. Portanto, aproveitou-se essa gente que veio de fora e houve uma concertação de gente bem preparada, de repente. Além disso, os miúdos tinham estudo acompanhado, no início havia miúdos de qualquer sítio. As escolas profissionais iam buscar os miúdos de taxi às terrinhas deles, era assim que era, todos os dias para as aulas. Portanto, havia umas condições financeiras boas, nas escolas profissionais, pagavam bem aos professores, tinham capacidade económica para fazer isso aos miúdos e, portanto, o nível começou a subir aí. As escolas superiores acho que ajudaram, mas acho que não foi o motivo da mudança. A partir daí, com as profissionais havia uma sequência, sobretudo no início havia mais selecção de professores, com o meio pequeno, e no início as condições eram um bocadinho luxuosas. Eu era aluno do Conservatório e quando ia à ESMAE, porque tinha uns amigos que estudavam lá, ficava chocado com aquilo… era muito pequenino porque tinha poucos alunos, mas como tinham muito dinheiro compravam pianos e punham-nos ao alto, encostados às paredes, nem estavam a uso, salas com 5 pianos, só porque tinham de gastar o dinheiro. E no Conservatório tínhamos pianos com 100 anos… Agora, 30 anos passados, a ESMAE tem os pianos a desfazerem-se e nunca mais teve dinheiro para comprar pianos, compra um piano velho de tempos a tempos. Mas acho que as escolas profissionais foram mesmo muito importantes. Hoje em dia, objectivamente, há muitos músicos portugueses em orquestras de primeira em todo o mundo.

Em 1997 regressas a Portugal e começas o teu percurso também como professor, no Conservatório Nacional em Lisboa, na Escola Superior de Música de Évora, até te fixares na ESMAE, no Porto. Em termos laborais como caracterizas as condições da profissão ao longo destes 27 anos?

Falo da minha experiência, claro. Dei, primeiro, aulas na Academia de Música de Santa Cecília, era o Rui Paiva o director na altura, e portaram-se mesmo bem comigo. Quando decidi vir para Lisboa não tinha trabalho e mandei cartas para todas as escolas de Lisboa, a única que me respondeu foi a Academia de Sta. Cecília. E quase na altura de chegar abre o concurso para professor no Conservatório Nacional. E, então, fui falar com o Rui Paiva e se ele me dissesse para não fazer eu não fazia, mas dava-me muito jeito concorrer, até porque em Sta. Cecília estava com meio horário, e ele foi impecável, disse-me para fazer e só me pediu que assegurasse um mês e que arranjasse um substituto, e assim fiz. Portanto, fui para o Conservatório. As condições laborais não eram más, eu tinha horário completo… em proporção, acho que eram bem melhores na altura do que são agora, porque dávamos as aulas, havia tempo para a nossa preparação pessoal e não havia estas coisas dantescas, que eu fui sabendo, das horas não lectivas, que as pessoas têm de fazer o que é que seja nem que seja estar lá a olhar para o tecto. Isso eu considero condições más, porque quando comecei a dar aulas precisava de um horário que me permitisse estudar, o do Conservatório estava no limite, e era possível. Agora, se tivesse de fazer essas horas todas era deixar de estudar e de tocar. Isso, no fundo, é uma forma de promover e de incentivar a que as pessoas deixem de tocar, ou seja, deixem de estar activos e isso, para o ensino artístico, é um desastre, não tem sentido nenhum. Com esse trabalho burocrático querem tornar os professores iguais aos outros professores, que também perdem demasiado tempo com esse trabalho. Um professor precisa de estudar, de estudar para si, senão não avança. Portanto, acho que nessa altura eram melhores, nesse sentido, bem melhores. Depois para a Universidade de Évora, aí eram condições boas, 12 horas lectivas, há outras coisas para fazer, mas não são horas fixas, consegue-se estudar e fazer trabalho pessoal, que é indispensável. Eu acho que é indispensável em todas as áreas, na verdade. Acho que os desgraçados dos professores estão sempre a perder muito tempo com tarefas com as quais, supostamente, querem moralizar a profissão e na verdade fazem-nos perder energia com um trabalho de papelada que os faz perder o foco.

Notas uma maior democratização no acesso ao ensino da música em Portugal? Ou seja, verificas que os alunos que chegam ao ensino superior vêm de contextos socio-culturais diferenciados, ou continua a ser um meio frequentado por uma elite cultural e económica privilegiada?

Acho que há uma grande diferença, acho que já não é assim de todo [para uma elite], hoje em dia. O risco que pode haver é o risco que a massificação traz sempre, que é… quer dizer, é um risco, mas não é para optar por outra coisa, é importante que as pessoas tenham acesso, e têm e não tinham, ou tinham muito pouco. Havia áreas geográficas em que nem era possível alguém aprender música. Conheço imensos músicos profissionais de primeira que, se tivessem a minha idade, não teriam tido hipótese nenhuma de serem músicos. Dez anos mais tarde já começaram a ter essa oportunidade, na altura em que apareceram as escolas profissionais. Portanto, acho que sim, acho que isso melhorou muito. Acho que há um risco de as escolas serem tentadas, porque precisam de manter os alunos, a baixar excessivamente a exigência. Não quero dizer com isto que todos os alunos devam ser profissionais, era o que mais faltava, era um absurdo, nem haveria lugar, a maioria deles é normal que aprenda música para saber música. Mas o que não pode acontecer é que se um aluno quiser mesmo fazer daquilo vida a escola não lhe propicie a formação que lhe permita fazê-lo, ou seja, tem de haver uma grande margem de escolha para que os miúdos possam conhecer, e a partir daí há os que querem conhecer e os que querem continuar, e as duas coisas são importantes e não podem ser mutuamente exclusivas. Mas há escolas em que há pressões das direcções de não exigência por terem medo de perder o aluno, de levar a que o aluno desista. Mas o nível mais alto tem sempre uma vantagem no contexto e continua a haver espaço.

Em relação a oportunidades artísticas, sentes diferenças nestes últimos 30 anos?

Nesse sentido acho que o panorama é pior do que era há 20 anos. Quer dizer, há coisas que não existiam e que existem, a Casa da Música no Porto que tem imensa actividade. O Porto, neste momento, tem concertos de nível alto, onde as pessoas podem ter contacto com coisas que não havia antes. A orquestra do Porto era uma anedota, as pessoas iam-se reformando e não eram substituídas, poucos violinos, muitos sopros, era uma catástrofe que foi ficando cada vez mais pequena até ser uma banda má. Era mesmo para fechar. Isso mudou, a Casa da Música tem um grupo de música contemporânea bom, tem coisas boas. Por outro lado, secou muita coisa à volta, houve muitas iniciativas que desapareceram, digo eu. Eu acho que a vida é mais difícil para quem começa agora, mas ao mesmo tempo reconheço que as coisas mudaram muito, não só no país mas no mundo, ou seja, quando eu comecei a tocar os organizadores faziam publicidade, encarregavam-se da divulgação, hoje isso é muito limitado, o que fazem desse ponto de vista. Há algumas instituições que fazem, mas pouco. A Casa da Música faz, a Gulbenkian, alguma coisa, o CCB já foi uma instituição forte mas agora é pouco, mas muitas vezes confiam muito no próprio músico, nas redes sociais, nesses contactos todos. É cómodo, sai mais barato e poupam dinheiro. Ora, como isso é um mundo que eu não frequento… percebo que estou um bocadinho fora de jogo e também é por opção, portanto, nesse sentido é o que é.

Mas sentes mais opções no País Basco, onde moras?

Não, acho que isso é genérico. As pessoas querem contratar alguém que sabem que vai ter público, preferem gastar menos dinheiro com publicidade. Nalguns sítios a imprensa tem mais atenção a isso, aqui desapareceu muito, a crítica de concertos existe mas é em muito menor quantidade, e em relação a concertos de piano é raríssimo, e normalmente só a pianistas internacionais, locais, pouquíssimo. Mas isso é uma mudança geral, e não é só na música. Existem carreiras hoje feitas a partir daí. Esses fenómenos sempre existiram numa certa medida, mas hoje em dia existem muito mais. Aqui há uns anos toquei no CCB, e era um programa bem bom, toquei com a minha mulher [Marta Zabaleta] os três bailados de Stravinsky, e estava completamente às moscas, mas não havia como não estar, não houve divulgação nenhuma. Isso hoje é um problema e penso se não deveria render-me, mas odeio, portanto tenho vindo a resistir.

Nasceste numa família em que o teu pai é músico [Maestro José Luís Borges Coelho], a tua mãe professora de história, portanto com uma acção educativa forte e importante, nomeadamente na criação das Escolas Profissionais…

Eu tinha 15 anos quando as escolas profissionais começaram, portanto, tenho uma ideia e lembro-me do meu pai estar metido nisso. O meu pai era professor do ensino secundário, esteve destacado para o Coral de Letras, mas o lugar efectivo era numa escola secundária. Depois, houve uma altura em que ele foi convidado para fazer parte do GETAP [Gabinete do Ensino Técnico, Artístico e Profissional] para trabalhar sobre o ensino da música. ( Devo dizer que o meu pai é do Partido Comunista e foi na época de um dos governos de Cavaco Silva que ele foi convidado para ir para ali. ) E quando ele foi para o GETAP, teve contacto com o que as escolas profissionais existentes na Europa faziam, mais viradas para actividades não artísticas, e havia uma vontade de adaptar aquele modelo ao ensino artístico, e levou o assunto à GETAP, que naquela altura funcionava no Porto com o Joaquim Azevedo a dirigir e a convidar o meu o pai, não porque o conhecesse, mas por recomendação de alguém, sem problema nenhum de ser de outro lado [de outro espectro político]. A memória que eu tenho é que essa ideia veio do Alexandre Reis, posterior director da Escola Profissional Artave [Escola Profissional Artística de Vale do Ave], que levou ao GETAP e o meu pai achou uma óptima ideia, que depois se foi espalhando. Pouco depois apareceu Mirandela, Viana, Estoril (que não durou muito, não sei porquê) e outras mais. Pronto, esteve na criação dessas escolas e foi um impulsionador da parte burocrática e normativa para pôr aquilo em prática.

Além disso, cresceste no pós-25 de Abril num contexto familiar muito politizado, com pai e tio [historiador e poeta António Borges Coelho] com posições fortes antifascistas e de oposição ao Estado Novo, o teu tio chegou a passar pela clandestinidade e a ser preso político por mais de 5 anos. Que memórias tens deste contexto familiar?

Bom, o meu pai não foi preso e as memórias que tenho são do pós-25 de Abril, a partir dos 3 anos. Não sentia risco, em casa. Aliás, o meu pai não era pessoa de não dizer o que pensava, nunca, nem mesmo antes do 25 de Abril. Nunca foi preso, mas teve vários processos disciplinares por dizer coisas a mais…! A seguir ao 25 de Abril houve algumas ameaças de bomba, muita gente teve, mas não lhe aconteceu nada. Lembro-me do carro do meu pai ter sido roubado, telefonaram-lhe a dizer que estava num descampado e ele foi buscá-lo assim com alguma tensão… mas não aconteceu nada. Não me lembro de passar nem receio nem medo de falar na rua. Na escola eram anos muito politizados, as pessoas eram todas de um partido, professores, miúdos, e era uma coisa intensa desse ponto de vista. Não tem nada a ver com o que se passa agora…

Tiveste o privilégio de privar com Fernando Lopes-Graça…

E com o Jorge Peixinho, também.

… sim, gravaste um disco com obra para piano dele…

Sim, gravei, mas nunca toquei música dele enquanto ele era vivo. Ele morreu em 1995, com 55 anos, foi professor de composição do meu pai, apesar de terem a mesma idade.

… em 1990 estreaste, no Acarte, Música Festiva nº18 – para os 18 anos do Miguel Borges Coelho que o Lopes-Graça compôs para ti. Foram uma influência importante para ti, enquanto estudante de música e nas tuas escolhas profissionais?

É difícil dizer… também não sei se seria músico se o meu pai não fosse, apesar de não ter sido o meu pai a pôr-me a estudar música, foi a minha mãe, que não era músico. O Lopes-Graça quando ia ao Porto ficava sempre em minha casa, e ficava lá longas temporadas, portanto, conheci-o bem, conheci muito bem o personagem, e era sobretudo uma referência ética, musical sim, obviamente, mas ética, fortíssimo. Contava imensas histórias e era uma pessoa com muito sentido de humor, sarcástico, não um humor leve. E o Jorge Peixinho, também o conheci muito bem, era muito diferente, era completamente caótico. Também ficava lá [em casa] sempre que ia ao Porto e nunca conseguiu chegar a minha casa sozinho, perdia-se sempre no caminho e o meu pai tinha de o ir buscar a alguma sítio, ele descrevia o que estava a ver à volta e sempre perdido…(risos) Eu rio-me, mas sou capaz de fazer coisas parecidas, perco-me com muita facilidade!

Como lês o crescimento dos partidos de extrema direita na Europa e no mundo? Vivendo entre o País Basco e Portugal notas diferenças?

Com choque. Era quase inexplicável… no mundo já está a acontecer há algum tempo. Eu vivo entre o Porto e França, na verdade, trabalho no Porto e estou em França por motivos familiares. Na região onde vivo a extrema direita não tem muita força. O País Basco francês tem uma direita nacionalista, mas é uma direita particular, o governo do País Basco é quase sempre do Partido Nacionalista Basco que é um partido de direita, mas com uma componente social forte, não é nada ultra-liberal, é democrata-cristão à antiga. Mas em França, a extrema direita está muito forte, foi um dos primeiros países a ter esse crescimento. Era estranho que não houvesse em países como Espanha e Portugal, como se tivessem uma espécie de vacina pelas ditaduras tão longas que tiveram, mas seria estranho… as coisas quando duram muito tempo é porque tiveram algum apoio, um regime que consegue durar 48 anos, podia não ser maioritário, mas algum apoio tem, uma parte de conivência, uma parte de medo, mas apoio existia. E para além disso, acho que há outro fenómeno novo, que não é nenhuma novidade, que é serem todos movimentos que têm discursos intrinsecamente irracionais, apelam à emoção e à total irracionalidade, e está sempre relacionado com o medo do outro, a culpa do outro, normalmente quem está em situação pior, e há sempre quem esteja em situação pior, portanto é sempre possível chegar-se muito longe nessa exploração. E isto tudo, não por acaso, teve muita força nos anos 20 e 30 usando muito bem os meios de comunicação que apareceram nessa altura, e hoje em dia têm uns que são o ideal, que, apesar de tudo, o jornalismo implica um mediador, hoje em dia com as redes sociais a mediação pode ser dispensada completamente. Ao ser dispensada as pessoas perdem filtro, na maioria dos casos não há capacidade para distinguir e, sobretudo, como são vítimas involuntárias de um algoritmo, o que consomem leva-as a consumir cada vez mais daquilo, porque recebem sempre a mesma informação, na verdade falam sobretudo com pessoas que estão de acordo com eles. Por exemplo, eu nunca tinha ouvido falar, até há 10 anos atrás, de terraplanistas, nunca conheci ninguém, nunca tinha ouvido ou lido que alguém dissesse, hoje, que a Terra é plana… mas hoje em dia existem bastantes que acreditam nisto. Como é que é possível? Têm uma paranóia, vivem numa realidade paralela, completamente alienados, mas há uns quantos, e como as redes sociais permitem que eles se reunam todos vão alimentando e produzindo conteúdos, com uma certa sofisticação argumentativa para dizer o absurdo completo. E a extrema direita acho que se alimenta desse tipo de alienação também, e de discursos, primeiro, com explicações muito simples dobre a realidade… a esquerda também pode ter explicações muito simplistas, às vezes, mas normalmente não culpa o outro, não há o medo do outro, e aqui sim, o que é uma coisa muito fácil de se propagar. O que é estranho pode produzir insegurança, se as pessoas se sentem inseguras é cómodo terem alguém que possam responsabilizar, e nem digo insegurança do ponto vista físico, policial, que em Portugal não tem sentido nenhum, é um país muito seguro.

E o que te parece que está a provocar uma forte adesão dos jovens a estas políticas anti-democráticas, xenófobas, racistas e de desigualdade social, no ano em que comemoramos 50 anos da Revolução de Abril?

É completamente chocante. Há uma parte de desmemória, não viveram e têm um contacto muito distante com a realidade anterior à liberdade. Eu não vivi, propriamente, mas os meus pais eram muito novos quando se deu o 25 de Abril, mas ainda viveram trinta e tal anos em ditadura, aquilo foi muito marcante para eles como experiência e, portanto, para nós também foi. Eu acho que a minha geração ainda sentiu isso. Se calhar, para os miúdos de agora isso já é muito longínquo, perdeu-se essa ligação, e como lêem pouco, consomem informação muito rápida dessa, com muito pouco critério para a escolher, acho que isso é terreno fácil para que cresça, como está a acontecer. Por exemplo, a questão da imigração. Qualquer pessoa que viva num país que não consegue garantir condições para a sua população o normal será emigrar, não é? Como acontece agora em Portugal, e aconteceu muito no passado. Para além da incapacidade de ser empático com pessoas como nós, ou que estão em situação de guerra, ou com pessoas que estão mesmo a deixar de ter condições para sobreviver em certos sítios devido às alterações climáticas, para além dos problemas todos que já tinham à partida, que são grandes, nem se quer é um discurso racional, porque a Europa precisa que venham imigrantes. Seria uma catástrofe, em termos de mão-de-obra necessária. Eu vivo mesmo na fronteira, a chegada de imigrantes e a polícia a mandá-los embora é diário para mim. Aliás, faço parte de uma associação de ajuda a imigrantes. A vigilância policial é completamente hipócrita, o [Emmanuel] Macron é um hipócrita, faz um pacto de lei sobre imigração com a [Marine] Le Pen, mas antes disso o discurso era um e a prática era outra. Depois da pandemia as fronteiras estiveram em vigilância permanente, entre Espanha e França, supostamente só poderia estar assim em estado de emergência e por 6 meses e foi prolongado por 2 anos. Entretanto, já a pandemia tinha acabado há muito tempo e a polícia admitiu-me que estavam ali por causa dos imigrantes. Param as pessoas em função da cor da pele, estritamente. É mesmo assim. Portanto, é um discurso muito fácil que prolifera com o instigar o medo do outro. Em França, houve terras onde ganhou a extrema direita com o medo dos imigrantes e não tinham nenhum, não havia imigrantes ali, portanto, é muito fácil fazer-se o discurso do medo. Por isso, como é que eu vejo? Vejo com terror. No dia 10 [de Março] temia que fosse mau, mas ainda foi pior do que o que eu pensava… 1 em cada 5 é muito, é um tipo de raciocínio absolutamente não empático com muita gente, é uma empatia limitadíssima a um círculo fechado. E depois, é uma triste ironia nos 50 anos do 25 de Abril…

Terminamos voltando à música. O teu percurso académico foi sempre direccionado para a performance, para a interpretação, certo?

Sim, depois muito mais tarde fiz o Doutoramento em Musicologia.

E sempre tiveste em mente que ser professor seria inevitável, ou também era uma vontade tua?

Eu gosto muito de dar aulas. Se no início, antes de dar, sabia-o? Não, não sabia. Aprendemos sempre com as aulas que temos e tivemos. Quando comecei a dar aulas foi a miúdos e aí estava mesmo nervoso, quando comecei. Lembro-me que quando fui para a escola de Sta. Cecília estava em pânico, porque tinha a ideia que poderia dar aulas a pessoas de 18, 19, 20 anos e já tinha dado algumas esporadicamente a amigos, mas a miúdos não fazia ideia como é que ia fazer. Eu tinha mais medo deles do que eles de mim (risos)… Mas eu queria muito estudar piano porque queria tocar e precisava de dar aulas, começou assim, mas hoje em dia não sei do que é que gosto mais. E aprendo muito a dar aulas, a organizar o pensamento, ao ter de explicar aprendo muito e contacto com outros pontos de vista, o que é muito bom. Gosto muito de aulas de [música de] câmara, que ainda é outro ponto de vista mais afastado. Portanto, se pudesse deixar de dar aulas não deixava.

Artigos Relacionados