Sociedade

Comércio

“Entretém-te, meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes”

Eles decidem por ti. Se hás-de almoçar em meia hora ou sair uma hora mais tarde. Se hás-de enfiar 40 horas de trabalho em 4 dias ou reservar algumas horas por semana para a empresa usar quando quiser, descansa, eles tratam disso. Se hás-de perder dias de férias ou ficar com o salário congelado.

Neste tempo, dificilmente encontramos um problema para o qual não haja quem prometa soluções fáceis, rápidas, e sem sair de casa.

Na ponta dos dedos, tens nutricionistas a esclarecer qual a melhor dieta para ti e ambientalistas a anunciar produtos para resolveres as alterações climáticas. Gestores a prometer ensinar-te a enriquecer com facilidade, e politólogos a determinar em quem deves votar.

E os teus horários de trabalho, quem resolve? Não procures mais: está nas mãos de um economista.

Longe vão os tempos das disputas intensas, prolongadas e colectivas — como foi a luta pela semana das 40 horas de trabalho, conquistada em 1998, após 12 anos de persistência dos trabalhadores em Portugal e da CGTP-IN.

Estamos no século XXI. Agora já não é preciso juntar meio milhão de trabalhadores em greve pela redução dos horários de trabalho — basta um Projecto-piloto!

Falo do Projecto-Piloto da Semana de Quatro Dias, cujo Relatório Final dá a táctica: Experimentar, Incentivar e Legislar. Os académicos experimentam, testam e avaliam; a concertação social fica encarregue de incentivar e promover; e no fim o Parlamento legisla. Assim, sem espinhas, nem tens de te incomodar com nada.

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

Em 2023, o Governo do PS lançou este Projecto-piloto. No ano anterior, este mesmo partido garantia que a redução do horário semanal máximo para as 35 horas para todos não era possível. O que mudou? Este Projecto-piloto explica tudo, começando logo por assegurar que a redução horária não tem de ser assim tanta — ufa!

A primeira das soluções para “operacionalizar” a semana de 4 dias representa um recuo de apenas 106 anos nas nossas aspirações colectivas, nada que não se recupere! 

Em 1918, a União Operária Nacional (UON) exigia as 8 horas diárias de trabalho como horário máximo em Portugal. Em 1919, esta exigência foi legislada para o sector industrial, mas só em 1962 é conquistada pelo sector agrícola — enfrentando a repressão fascista, dezenas de milhares de operários agrícolas paralisaram o trabalho a 1 de Maio de 1962, alastrando a greve aos dias seguintes e a outras localidades. Houve despedimentos, espancamentos, prisões, torturas e assassinatos. Mesmo neste cenário, estes trabalhadores mantiveram-se firmes e conquistaram as 8 horas diárias de trabalho em todos os campos do sul antes do fim do ano.

A luta pelo direito a mais tempo para viver nos dias em que se trabalha custou muitas vidas. Ainda assim, este economista considera positivo para a economia ir tirando meia hora do almoço, adicionar meia hora ao início e ao fim do dia, assim aos poucos, para nem dares conta.

Nos casos em que os trabalhadores precisarem mesmo de conjugar a vida pessoal com a profissional todos os dias, em vez de viver em escalas de 4 dias para trabalhar / 3 dias para viver, há alternativas: o banco de horas, que permite aumentar o período normal de trabalho até às 12 horas por dia; 60 horas por semana; 200 horas «extra» por ano, sem qualquer pagamento.

Como funcionaria isto na tua semana de 4 dias? Muito simples! Guardas algumas horas por semana num banco de horas, e essas horas ficam, palavras do economista, “à disposição da empresa”, a descontar quando e como a empresa quiser — salário incluído!

Não serve? E que tal misturar o conceito de feriado com o de folga e reduzir os já poucos dias mínimos de férias?

Não? O coordenador deste Projecto-piloto lança outra solução: “restringir os aumentos salariais durante um período de ajustamento”.

Como vai ser? Mais horas por dia, banco de horas, menos férias, ou congelamento de aumentos salariais? 

Descontrai, tens tempo para reflectir sobre a melhor opção para ti, até porque bastou mudar o Governo para já não haver grande coisa a fazer além de esperar — como te dizia, isto é coisa para começar na academia, passar pelas empresas e ir desaguar no parlamento.

Antigamente, noutros séculos, o Governo mudava e a luta continuava, até porque as conquistas se faziam de luta (já disse que luta pelas 40 horas em Portugal durou 12 anos?), mas agora já não caímos na irresponsabilidade de te incluir no processo científico nem no cálculo da produtividade. Quando o processo científico acaba, eles até te deixam votar e tudo!

“Entretém-te, filho, e vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada”.

Artigos Relacionados