Há precisamente um ano, no início de julho, utentes de várias piscinas municipais juntaram-se em protesto para exigir a reabertura destes equipamentos. “Quando vimos que não íamos ter uma resposta clara, juntamo-nos num grupo”, recorda Irma Varela. Encerrados, segundo a autarquia, para serem requalificados, continuam fechados. Integrada no movimento Piscinas Jáqueixa-se à Voz do Operário da falta de vontade da câmara municipal e da junta de freguesia de resolver o problema. Mais tarde, foram informados de que havia um dano estrutural na piscina de São Vicente, mas nada avançou desde então.
“Aqui no bairro [Alfama], era um serviço fundamental para a comunidade. Temos muitas crianças e muitas escolas. Aprendiam a nadar, que é uma coisa que, num lugar como Lisboa, com tanta praia e tanto mar à volta, é importante. Também era importante para as pessoas reformadas porque as atividades eram não só desportivas e saudáveis, mas também eram um contexto forte de socialização, um lugar de encontro”, descreve. “Agora não há alternativa”, lamenta, recordando que na cidade onde nasceu, Madrid, as piscinas são, no verão, espaços de lazer. “Lá, há muitas piscinas públicas sem cobertura, não são desportivas”. Nesta zona da cidade, nem uma coisa nem outra. Para além da piscina de São Vicente, também a de Arroios e a do Casal Vistoso estão fechadas. Não se sabe quando haverá outro protesto mas este movimento de utentes continua a pressionar as autarquias para que a requalificação e obras necessárias avancem o mais rapidamente possível.
Em 2023, no mesmo verão em que decorriam protestos pela reabertura destes equipamentos municipais, surgiram algumas fotografias de piscinas improvisadas em estacionamentos e outras zonas de bairros periféricos da cidade. Então, António Brito Guterres, assistente social e doutorando em Estudos Urbanos, com grande conhecimento e experiência junto das associações de vários bairros, apelou nas redes sociais ao apoio à associação de moradores do bairro da Quinta do Lavrado. O motivo: uma piscina de lona para as crianças e jovens moradores naquela parte de Lisboa.
Aproximar o rio da população
Para Tiago Mota Saraiva, arquiteto e professor universitário, isto “mostra bem a falta de equipamentos públicos” e recorda que “é muito caro ir às praias, mesmo não estando Lisboa longe da costa”. Nesse sentido, considera que “a resposta dos bairros é que os mais jovens se refresquem à beira das suas casas” com a “ocupação do espaço de estacionamento por pequenos tanques ou piscinas daquelas insufláveis, o que não é visto com bons olhos”. Sublinha que “representam em si mesmo também a manifestação de uma carência. Aquelas crianças, certamente, gostariam muito mais de estar a nadar numa piscina municipal”.
Em relação à falta de espaços de lazer em contacto com a água, dá o exemplo de cidades como Paris ou Budapeste em que se criaram espaços para as pessoas usufruírem dos respetivos rios. “Nós já tivemos em tempos a ideia de uma praia fluvial com controlo de qualidade das águas mas é algo muito embrionário, que também poderia ser, certamente, uma solução”. Contudo, considera que seria dissonante da lógica atual de cidade de consumo.
“Estaria desajustado daquela beira mar, daqueles equipamentos à beira rio, do bar da moda com preços muitos altos que não é muito conciliável com crianças da margem da cidade a descerem até ao rio e virem tomar banho ali. Há não só uma turistificação da frente de rio como também uma atitude classista com a mesma frente de rio. E uma atitude para condicionar o seu uso a um conjunto reduzido de classes sociais. David Harvey explica muito bem, isto é a disputa pela cidade, a cidade é sempre, e sobretudo o espaço público, o grande palco da luta de classes nas opções que são tomadas pelos poderes públicos. Uma grande piscina à beira rio com controlo de água, com qualidade e sem custos para as crianças da cidade seria certamente um grande inibidor do bar gourmet que serve aperitivos ao fim de tarde”.
Por outro lado, Tiago Mota Saraiva considera que também as escolas são equipamentos públicos que deviam estar ao serviço das populações. “Podem ser um grande equipamento de bairro, para reuniões de moradores e iniciativas populares. São espaços privilegiados para isso. Com a liberalização do uso das escolas, com os espaços que são concessionados a empresas, isto faz com que estes equipamentos públicos deixem de ser o que foram, sobretudo, no pós 25 de abril, do ponto de vista de congregação das pessoas”. Para o arquiteto, há um grande receio do poder político sobre a ocupação e decisão da população “sobre as linhas com que se cose o espaço público”. Dá o exemplo dos imigrantes que jogam futebol de noite no Martim Moniz. “Isso são coisas com que os decisores políticos não estão ainda habituados a lidar e tradicionalmente não gostam”.
Autarquia e EGEAC retiram apoios a Bairro em Festa
Até 2023, o festival Bairro em Festa, organizado no Intendente pela cooperativa LARGO Residências em parceria com a EGEAC, Câmara Municipal de Lisboa e Junta de Freguesia de Arroios, trazia várias associações para o espaço público e promovia uma rede cultural local com o intuito de dar a conhecer a realidade de vários bairros.
Este é o primeiro ano desde 2012 que o Bairro em Festa não vai acontecer. De acordo com Marta Silva, gestora cultural da LARGO Residências, o motivo prende-se com a falta de financiamento da EGEAC e o desinteresse da junta de freguesia. “Nos últimos anos, no Largo do Intendente, deu para assistir a uma inversão de paradigma. Era uma cidade com mais atividades, mais espaços de encontro. Os espaços culturais tinham um papel importante, de diversidade e coesão. Nos últimos anos, de forma gradual, há dificuldade em dar continuidade a esse trabalho”, considera. Explica que falta acesso a espaços e assiste-se ao fecho de associações e coletividades. “Nós temo-nos reinventado para não desaparecer, senão estaríamos na mesma situação”.
Lisboa está a tornar-se numa cidade assética e isso também se deve a uma reconfiguração social. A gestora cultural recorda a recente polémica sobre o ruído provocado pelas esplanadas. “O centro da cidade antes era uma zona habitada, sobretudo, por uma população idosa e migrantes. Nos últimos anos assistimos à recomposição social da vizinhança e a pessoas que começaram a achar interessante viver no centro mas no momento em que se tornaram moradores passaram a ser fiscalizadores, a exigir que [Lisboa] fosse um local dormitório”, afirma. “É importante o direito ao descanso mas não podemos exigir o fim de qualquer ruído, isso nunca existiu. Já sabíamos quando viemos para aqui viver”. Nesse sentido, considera que há um novo contexto que potencia licenças de ruído mais limitadas e menos autorização para eventos, ao mesmo tempo que se aprofunda a privatização do espaço público.
“Passámos de um paradigma de bairros não seguros para uma situação de tensão da construção de um bairro dormitório e assético, de vidas engavetadas, de espaços de fruição cada vez mais diminutos e controlados”.
A perda de apoios públicos da autarquia para o festival Bairro em Festa não significa o fim do evento mas não houve tempo para o manter este ano e a cooperativa pretende agora apostar numa maior diversificação de fontes de apoio. No fundo, o festival que foi criado para mostrar à cidade uma zona que tinha sido reabilitada com a colaboração das associações locais acaba por ser também vítima dos novos tempos. “Este festival foi sempre feito com as entidades que estavam no território e para mostrar aquilo que iam fazendo ao longo do ano. Era também uma forma de terem verbas para financiar as atividades dessas associações, era um momento chave para terem recursos. A missão para a qual estamos aqui, ao contrário do que se possa pensar, não está completa. A população vulnerável continua ali, gente que não tem acesso à cultura, e agora ainda é mais difícil estar cá, é uma pressão de uma cidade que trouxe o luxo para este lugar”, descreve Marta Silva. “Para muita desta gente, o bairro não melhorou, agora é uma zona de maiores contrastes”.
Entretanto, a cooperativa LARGO Residências mudou, novamente, de sítio. Depois de 11 anos no Largo do Intendente, promoveu a ocupação temporária e reparação de parte significativa do antigo Quartel da GNR Cabeço de Bola com apoios públicos. Entretanto, este ano, mudou-se para o antigo Hospital Miguel Bombarda, “trazendo uma dimensão de acesso público” e, segundo Marta Silva, com dinâmica para ser um lugar “onde acontece cultura” e onde a vizinhança lhe dá “um uso individual, social e coletivo”.