O mundo e o país enfrentam o árduo desafio de ultrapassar o tremendo perigo de saúde pública do Covid-19. Na maioria dos países, o número de infetados e mortos continua a aumentar diariamente. Os Estados parecem incapazes de conter a pandemia e sobre os povos além do risco imediato de sobrevivência, outros riscos, de natureza social e económica, não apenas se avizinham como são já uma dura realidade de consequências e temporalidade ainda imprevisíveis.
Por outro lado, e previamente à globalização da pandemia, a República Popular da China, primeiro país a detetar e enfrentar o Covid-19, ainda que com grande sacrifício, conseguiu sinalizar, monitorizar e combater eficazmente a pandemia. Para lá da cortina mediática, dos boatos e mentiras, frequentemente alimentados a sinofobia e anticomunismo, vale a pena conhecer e retirar alguns exemplos, não só de como foi possível vencer o Covid-19, mas também de bravura e absoluto compromisso solidário entre o povo chinês.
No final do ano de 2019, na cidade de Wuhan, na província de Hubei, começam a chegar notícias de uma nova tipologia pneumónica. Entre os primeiros alertas e avisos de que algo novo estava a emergir encontrava-se o Médico Li Wenliang (ele próprio viria a falecer de Covid-19 em 7 de Fevereiro), contudo estes avisos foram inicialmente desacreditados pelas autoridades. Apenas em 30 de Dezembro, a partir do estudo efetuado sobre um paciente com pneumonia, foi possível aferir cientificamente as características do Covid-19.
No início do ano, as autoridades foram reportando cada vez mais casos da pandemia, e recolhendo progressivamente informação sobre a mesma: quais os sinais e sintomas, os efeitos, características de infeção, as dinâmicas de transmissão, os grupos de risco e a sua fatalidade. A suspeita inicial da origem animal (morcego) levou imediatamente ao encerramento de mercados em Wuhan e restante China (acreditava-se que o mercado de marisco local, que vendia diversas animais, seria o “ground-zero” da pandemia), mas esta em Wuhan continuava a alastrar, com ramificações para a restante província e país. A transmissão não seria apenas animal-humano, como inicialmente se pensou, mas também humano-humano. A 3 de Janeiro, a China notifica a Organização Mundial de Saúde (OMS) da epidemia e entrega a sequência do genoma no seguinte dia 10.
Neste quadro de degradação crescente da situação, a 23 de Janeiro e com 495 casos de infeção confirmados na cidade, as autoridade decidem encerrar Wuhan com os seus 9 milhões de habitantes. Todos os transportes públicos são encerrados, a atividade económica para e todos os habitantes são confinados às suas habitações. Simultaneamente, são já aplicadas novas tecnologias de informação e inclusive com recurso a inteligência artificial para deteção de redes de contacto, permitindo aferir grupos e populações prioritárias e de risco.
Perante o crescimento do número de infetados e de casos sob suspeita, o pessoal médico de Wuhan, composto por cerca de 38 mil profissionais, e as infraestruturas instaladas demonstravam-se insuficientes. Logo ao segundo dia de encerramento da cidade, inicia-se a construção de um novo hospital, com 1000 camas e especialmente concebido para pacientes de Covid-19, ainda um segundo hospital equipado com mais 1600 camas já estava a ser planeado. Dias depois chegam a Wuhan mais 1200 médicos oriundos de toda a China.
Em 31 Janeiro, a OMS declarou a “Emergência de saúde publica de preocupação internacional”. A luta para deter o Covid-19 começa a ir para lá de Wuhan, a grande preocupação para a OMS já é a eminente exportação do vírus para países com sistemas de saúde mais frágeis.
Por esta altura e em resposta a eminentes necessidades, a China retoma e fortalece sectores produtivos para a produção em larga escala de material de proteção médica como luvas ou máscaras, multiplicando por dez a sua capacidade e atingindo a produção diária de 300 mil máscaras. Outras medidas no campo hospitalar são tomadas, como a mudança de tipologia dos quartos para os internados com quarentena, a robotização de serviços (como a entrega de refeições), crescentes cuidados com a saúde do pessoal clínico e a definição de regras exigentes quanto aos objetos que entravam nos quartos sob o principio de que “o que entra fica lá”.
No inicio de Fevereiro há novo reforço do pessoal médico em Wuhan com mais 10 mil profissionais oriundos de quase todo o país, um número que ainda triplicou nas semanas seguintes, não só para apoio à cidade de Wuhan mas também das infetadas cidades vizinhas. Os batalhões médicos, oriundos de 16 províncias chinesas, estavam organizados territorialmente, e como cada batalhão vinha de uma província, a cada batalhão era destinada uma cidade, sumariamente, o princípio de que cada província protege uma cidade.
A 2 de Fevereiro, o novo hospital começou a funcionar, a fatalidade baixava para menos de 3%, dos infetados, com o auxilio precioso do medicamento cubano Interferon Alfa 2-B. Dia 5 Fevereiro (dia 14 de encerramento da cidade), permaneciam 10 mil casos confirmados em Wuhan, contudo havia ainda poucos kits de teste, optando as autoridades pelo internamento de todos os suspeitos e pacientes com sintomas ligeiros, o que num contexto com menos de 200 camas disponíveis nos hospitais obrigou à transformação para aproveitamento clínico de espaços públicos como pavilhões desportivos e hotéis.
Ao longo deste processo e do esforço das autoridades médicas e sanitárias, milhares de voluntários organizados pelas autoridades fizeram a distribuição de comida e material médico aos milhões de habitantes da cidade, que apenas podiam sair de suas casas por motivos médicos ou de combate à pandemia.
No dia 12 de Fevereiro, o Bureau Político do Partido Comunista Chinês acusou o “formalismo e a burocracia” como “inimigos no combate ao vírus”, registando-se novas mudanças na direção da cidade e da província e mais medidas ainda como o recurso a pessoal militar, logo no dia seguinte (seria a primeira vez que o Exército entrava em ação fora de contextos estritamente militares). Por esta altura, 3 mil médicos estavam já infetados, vindo 12 a falecer. Em 20 de Fevereiro, permaneciam 75 mil casos de infeção na China.
As últimas semanas têm revelado o acerto das medidas aplicadas, e no momento em que estas linhas são escritas, a província de Hubei sem novos casos há vários dias e a situação na China parece globalmente controlada. Segundo Bruce Aylward, da OMS, “não há dúvidas de que a china teve uma abordagem ousada ao coronavírus que mudou o curso de uma escalada rápida de uma epidemia mortal. Parece-me importante que o povo de Wuhan saiba que o mundo lhe deve e quem quando esta doença termine, tenhamos oportunidade de agradecer ao povo de Wuhan”.
O relatório da Missão Conjunta OMS-China na Doença Coronavirus 2019 (COVID-19), onde participaram peritos oriundos de 25 países, que tinha como objetivos a informação de planeamento nacional e internacional de resposta à pandemia e os passos para a preparação e prontidão de resposta para áreas geográficas não infetadas foi para lá destes objetivos, e além da descrição da doença, descreve de forma precisa os vários passos dados pela China e as diversas respostas de sucesso.
A China após criar o Grupo de liderança central para resposta epidémica, analisando globalmente a sua atuação, dividiu a sua intervenção em três fases: fase 1 – prevenção da exportação da pandemia para fora de Wuhan/Hubei, deteção da origem do vírus, desenvolvimento de testes; fase 2– redução da intensidade de alastramento da doença juntamente com tratamento de doentes, aplicação de medidas a nível nacional como encerramento de mercados e restrições ao tráfego; fase 3– redução dos clusters de casos, prevenção e controlo da epidemia com sustentabilidade económica e social, implementação de medidas centralizadas e standartizadas com comprovação cientifica;
O relatório aponta ainda quatro conclusões sobre a intervenção das autoridades:
- Em face de um vírus desconhecido a China colocou em marcha talvez a mais ambiciosa, ágil e agressiva política de controlo de doença conhecida na História, com variáveis especificas e maleáveis para contexto nacional, local e comunitário;
- A cobertura excecional e apenas possível pelo compromisso para uma ação coletiva em face de um risco coletivo, que se revela pela solidariedade dentro das comunidades, e a outros níveis, por exemplo quando a doença mesmo chegando a novas províncias, os governadores locais continuavam a enviar pessoal medico para Wuhan;
- A estratégia seguida mudou o curso natural da doença que em duas semanas passou de 2478 novos infetados para apenas 409 (à data do Relatório);
- A China foi capaz de delinear uma estratégia para recuperar a sua dinâmica económica, reabrindo escolas e retomando o curso de vida normal da sua sociedade, mesmo enquanto trabalha para conter eventuais cadeias que possam existir;
O relatório conclui alertando para a necessidade de outros países construírem cenários e explorarem todas as tipologias de medidas que atrasem a transmissão do Covid-19 porque a maior parte dos sistemas de saúde não estão preparados, em todos os sentidos (como tragicamente se confirma), para uma resposta eficaz e que será através de medidas de prevenção e não-farmacêuticas que se poderá atrasar ou impedir o seu alastramento, permitindo ganhar tempo para o desenvolvimento de ferramentas de combate ao vírus.
Entretanto as autoridades chinesas prosseguem a investigação para medicação e vacinação para o Covid-19, utilizando diversos recursos e meios académicos e militares, enquanto simultaneamente apoiam dezenas de países por todo o mundo como a Itália, Espanha, Sérvia ou o Irão.
Concluindo, o combate a esta ou outras pandemias só é possível num país com um forte sistema de saúde público, com uma profunda articulação de vários sectores do Estado, com capacidade produtiva forte e domínio de sectores estratégicos, com um sector científico dotado de pessoal e meios, com profissionais de saúde valorizados e mobilizados, com estratégias de prevenção pública e de medicina preventiva, e essencialmente com sentimento de comunidade, de unidade e objetivo comum. Esperemos que Portugal siga esse caminho.